Cardoso, Fernando Henrique

Rodrigo Santaella Gonçalves

Fernando Henrique Cardoso (1931-), brasileiro, sociólogo, foi considerado um dos principais marxistas latino-americanos na segunda metade do século XX. Entretanto, especialmente por sua trajetória política a partir dos anos 1980 e especialmente nos 1990, sua vinculação teórica ao marxismo é constantemente questionada. Sua principal contribuição teórica está relacionada ao desenvolvimento teórico em torno do conceito de dependência, exposto particularmente no livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina. A despeito de sua trajetória política posterior, as contribuições teóricas mais importantes de Cardoso contribuíram para um processo de “nacionalização do marxismo” no Brasil.
A preocupação geral que moveu as pesquisas de Cardoso ao longo de seus primeiros anos de carreira acadêmica se relacionava com as peculiaridades históricas e as condições para o processo de industrialização e desenvolvimento no Brasil e posteriormente na América Latina. Há um caminho percorrido pelo autor a partir desse fio condutor até 1973, período que engloba as principais contribuições teóricas de Cardoso e no qual ele definitivamente pode ser considerado marxista. As primeiras preocupações, nos anos 1950, relacionam-se ao papel do educador e da educação para a garantia do desenvolvimento e da modernização, numa perspectiva ainda bastante marcada pelo dualismo superado a partir de seu diálogo com o marxismo, que começa mais organicamente em 1958, com o grupo de leitura que ficou conhecido como Seminário d’O Capital. A partir de 1960, emerge a questão da mentalidade da burguesia recém-formada – proveniente do regime senhorial – que protagonizou a industrialização do país na até a década de 1950, e das condições sobretudo internas para o país adequar-se a esse processo de industrialização e potencializá-lo – considerando inclusive o monopólio tecnológico dos países centrais como entraves ao desenvolvimento – numa perspectiva ainda bastante influenciada pelo nacionalismo. Depois, especialmente a partir da pesquisa de doutorado sobre a questão do negro e durante a pesquisa entre 1961 e 1962 sobre o empresariado nacional, a problemática se desloca para as peculiaridades da burguesia nacional relacionadas à sua origem, ainda dialogando com a questão das mentalidades mas ampliando o espectro para as relações, alianças, e das dificuldades dessa burguesia para dirigir qualquer processo transformador de caráter nacionalista no país, o que fica claro em Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico (1964).
A partir daí, e de sua saída do Brasil por conta do golpe militar, as pesquisas efetuadas no Chile vão mostrando que as características das burguesias nacionais na América Latina e sua impossibilidade de dirigir mudanças nacionalistas não se relacionam apenas com sua origem, mas sobretudo com as condições estruturais de desenvolvimento do capitalismo internacional, que se transformava. É aí que entra a discussão sobre a dependência e o desenvolvimento associado, retratada em Dependência e Desenvolvimento na América Latina (1967) e Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes (1971).
As formulações sobre dependência surgiam a partir da crítica ao paradigma cepalino e a partir de um balanço do fracasso de suas principais propostas em termos de políticas públicas, especialmente a industrialização via substituição de importações e o modelo político populista que a sustentava. Para Cardoso, a industrialização dos países periféricos não seria causada simplesmente por crises econômicas internacionais, mas sim pela conjunção dos fatores estruturais com a dinâmica interna de cada sociedade, desde a história da formação de suas burguesias à relação que elas estabeleceram com o mercado mundial.
Em resumo, a depender do tipo de colonização e das características da economia de cada país, somados aos condicionantes globais da dependência, se configurariam formas históricas diferentes, com arranjos determinados e dinâmicos entre as classes e grupos sociais em cada país. Na fase de “expansão para fora”, eram duas as situações gerais encontradas na América Latina: a de controle nacional do sistema produtivo e as de enclave.
Esses cenários, com todas as suas diferenças, levam a um novo modelo de desenvolvimento, em que se soma a ação deliberada dos centros hegemônicos em buscar ampliar seus investimentos no mercado interno dos centros periféricos, e gera-se a nova situação de dependência: os vínculos não são mais apenas de importação-exportação, mas sim de investimento direto nos mercados. O esquema político de sustentação desse novo modelo requereria uma articulação entre a economia do setor público, as empresas monopolistas internacionais e o setor capitalista moderno nacional: o mercado interno – no qual as empresas do centro investem – passa a ser formado pelos produtores nacionais, que são os “consumidores” prioritários, e não pelas massas. Assim, a política de redistribuição de renda e a demanda reivindicatória das massas, que em outro momento eram consideradas como propulsoras do desenvolvimento na medida em que incrementavam a capacidade de compra no mercado interno, agora passam a ser obstáculos, o que num regime democrático causa muita instabilidade, na medida em que os ocupantes do Estado precisam dessas massas para elegerem-se, daí a tendência a esse modelo de desenvolvimento ser dirigido por regimes autoritários. Ou seja, era possível haver desenvolvimento dependente, mas ele não geraria distribuição de renda ou mais igualdade.
A análise construída em Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes coaduna com essas reflexões. Se é certo que os empresariados brasileiro e argentino não têm “vocação política hegemônica”, isso não significa que não tenham uma ideologia apropriada a seus interesses, mas sim uma política de interesses compartidos, típica das situações de dependência estrutural.
A incapacidade histórica da burguesia não era para compreender seus próprios interesses, mas sim para alterar o curso do desenvolvimento internacional, o que fazia com que tivesse que adequar-se a ele. Cardoso defendia que não se devia separar o “externo” do “interno”, mas sim encontrar as características das sociedades nacionais que expressam a relação com a totalidade. A relação entre processo econômico, condições estruturais e situação histórica na América Latina desvendada por ele deixava claro que os esquemas teóricos formulados para os países desenvolvidos não davam conta de compreender as especificidades da América Latina. Nesse contexto surgia a necessidade do conceito de dependência, que substituindo a ideia de subdesenvolvimento e a de periferia econômica, acentuava não só o subdesenvolvimento econômico, mas também os processos políticos de dominação de uns países sobre os outros e de classes sociais sobre outras. Ao demonstrar as transformações históricas que surgem a partir das formas básicas de integração – enclave e controle nacional do sistema produtivo – Cardoso buscava evitar o equívoco de acreditar que a situação externa condiciona mecanicamente a interna e, por outro lado, de acreditar que as mudanças externas são irrelevantes.
É verdade que as análises de Cardoso apontavam para muitas dificuldades de transformação. “Forma possível” e “impossibilidade histórica” foram expressões utilizadas pelo autor para caracterizar “o novo tipo de desenvolvimento, [no qual] os mecanismos de controle da economia nacional escapam parcialmente do âmbito interno na medida em que certas normas universais do funcionamento de um sistema produtivo moderno, impostas pelo mercado universal, não permitem alternativas”1. Reiteradamente, porém, ele pondera o contrário ao longo de seus textos.
Um dos pontos mais discutidos dessa tensão aparece ainda em Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico, de 1964. No livro, Cardoso argumenta que a situação em que se encontrava a burguesia brasileira a tornara “temerosa e incapaz” de “romper os vínculos com a situação de interesses tradicionalmente constituídos, isto é, com os grupos estrangeiros, com os grandes proprietários e com os comerciantes e banqueiros, a eles ligados”2. Resumindo o argumento, para se consolidar como classe hegemônica, a burguesia nacional precisaria contrariar os interesses dos grupos tradicionais, mas para isso precisaria aliar-se com as classes populares, o que não fazia por medo de perder tudo em uma transformação radical. É neste contexto que Cardoso termina o livro afirmando que a burguesia já optou pelo “partido da ordem”, e que resta saber o que farão as massas urbanas e os grupos populares, deixando no ar a pergunta entre as alternativas: será subcapitalismo ou socialismo?
A hipótese que levantamos é de que durante o período de sua produção teórica analisado aqui houve, especialmente vinculada à imprevisibilidade das conjunturas de disputa política no qual estava inserido o autor, uma tensão que acompanhou suas reflexões: de um lado a busca pela determinação das condições estruturais de possibilidade da transformação e a percepção de que elas eram, em geral, bastante reduzidas e, de outro lado, a concessão ao inesperado, à possibilidade de transformação proveniente de algum cenário imprevisto, ocasionado pela ação das coletividades subalternas.
Em um pequeno texto sobre Cuba, chamado “Lição ou Símbolo”, essa tensão se expressa de forma mais intensa e parece justificar nossa argumentação. Escrevendo em 1973, Cardoso afirma que não pode haver esperança sem fatos e, nesta medida, Cuba os havia proporcionado.
Primeiro, uma lição: a dependência pode ser quebrada. O peso das estruturas jogava contra e não a favor. A frialdade da análise político “objetiva” teria que apostar no fracasso. E houve vitória. No calcanhar do gigante, afirma-se a liberdade de diferir. Com fatos. (...)
Lição dura a deste método. O quase martírio do Che e as anotações que ele deixou em sua última arremetida têm para a América Latina o significado supremo de mostrar o preço deste aprendizado. Não há líder – e o exemplo refere-se talvez ao mais genuíno pregador da lição cubana para a América Latina – que deixe de pagar um preço absoluto quando se dá o desencontro entre a vontade de mudar e as condições da mudança. Mesmo neste caso, de insucesso, fica, entretanto, o símbolo: para mudar é preciso lutar3.
A dependência pode ser quebrada mesmo que o peso das estruturas jogue contra. Quando Fernando Henrique fala da frialdade da análise objetiva, sem dúvida poderia estar falando de si mesmo, de sua própria forma de analisar a realidade e a América Latina – ainda que em seu modelo de discussão das formas de dependência a formação histórico-estrutural de Cuba gerava condições para esse tipo de ação revolucionária, já que não havia ali mediações e nem expectativas de incorporação para as massas. De qualquer forma, o mais interessante dessa passagem é notar um Fernando Henrique estimulado com os fatos que derrubam as estruturas, mas atento – com o exemplo do Che – ao preço que se paga pelo desencontro entre a vontade de mudar e as condições para a mudança.
Mesmo que mantivesse o elemento utópico de sua ideia-força transformadora, quando Cardoso avaliava concretamente as condições para as transformações possíveis – e as via sobretudo no âmbito político – o realismo pragmático se impunha. Esse é o contexto que explica o distanciamento posterior de Cardoso do marxismo e o fato de sua vinculação ao marxismo ser tratada por muitos críticos como inexistente.
Nossa hipótese, na esteira de Lima4, é que essa ambiguidade vem precisamente do fato de que Cardoso se referenciava no marxismo mas não chegava a conclusões revolucionárias. Ele se identificava, no prefácio escrito em 1977 para a segunda edição de Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, com os que “continuaram lendo Marx buscando inspirar-se para entender a realidade contemporânea e não apenas para repetir o já sabido com um jargão de versículo de bíblia, conforme a moda”5, e todo o debate teórico da introdução do livro tenta fundamentar a dialética marxista como forma de conhecimento das totalidades concretas em suas particularidades. Não há dúvidas, por outra parte, de que em toda sua obra deste período há uma preocupação com as particularidades, e com a discussão teórico-metodológica que desse conta delas, sem reduzir a realidade a esquematismos. A preocupação provém do diagnóstico de que o cientista social latino-americano sempre convive com o “risco de utilizar quadros de referência ‘científicos’, isto é, sancionados pela comunidade acadêmica, mas que não encontram apoio nas situações de vida que ele experimenta e nas estruturas que deseja explicar”6
Cardoso se referenciava no marxismo como método de análise da realidade ao longo do período mais importante de sua produção teórica e de suas formulações sobre a dependência, e sua intenção não era repetir os erros das correntes que reproduziam as fórmulas dos manuais difundidos desde a União Soviética. Seu marxismo vinha questionando, à esquerda, o marxismo típico dos partidos comunistas vinculados à Terceira Internacional, e particularmente dos setores majoritários do PCB no Brasil naquele momento. Toda a ideia da leitura de Marx no original no Seminário d’O Capital visava superar o mecanicismo e dar conta das especificidades da realidade local brasileira, sem deslocá-la das questões universais.
As considerações de Gramsci sobre a contribuição do moderno Príncipe para a construção de uma compreensão sobre a vontade nacional-popular podem ser um referencial para estabelecer a relação da produção teórica de Cardoso com o que aqui chamamos de nacionalização do marxismo, em diálogo com Bernardo Ricupero7 e Luis Tapia8. Gramsci falava que uma das primeiras partes do estudo deveria ser dedicada à vontade coletiva, “apresentando a questão do seguinte modo: quando é possível dizer que existem as condições para que se possa criar e se desenvolver uma vontade coletiva nacional-popular?” E “em seguida, uma análise histórica (econômica) da estrutura social do país em questão e uma representação “dramática” das tentativas feitas através dos séculos para criar esta vontade e as razões dos sucessivos fracassos”9.
A primeira parte da segunda pergunta de Gramsci foi praticamente uma obsessão para Cardoso. A partir dessa que sem dúvida é sua maior preocupação, ele chega em diversos momentos de forma explícita, e em muitos outros de forma indireta, ao debate das condições para que se possa criar e desenvolver uma vontade nacional popular e busca explicar a partir de sua análise estrutural as razões para os fracassos até aqui e para as dificuldades futuras.
Neste sentido, podemos falar de uma nacionalização do marxismo em Cardoso tanto por conta de sua forma de análise da realidade, pautada pela unidade dialético-concreta, quanto pelas problemáticas que aborda. De fato, ao construir uma interpretação que ‘nacionaliza’ o marxismo, ele parte dialeticamente do concreto da realidade nacional para terminar voltando a ele em outro patamar, considerando novas determinações e percebendo sua inserção na totalidade: é uma nacionalização do marxismo que, a partir do que há de nacional e particular, chega ao internacional e geral para depois voltar com mais clareza ao ponto inicial. Ao fazer isso, Cardoso contribui com uma reinterpretação geral do capitalismo a partir da periferia, construindo uma das principais contribuições da América Latina ao marxismo internacional.
A nacionalização do marxismo em Cardoso contribuiu para que ele percebesse, a partir da realidade local, justamente a emergência da globalização do capitalismo como determinante estrutural que limita e forja uma nova condição nacional. Suas conclusões, entretanto, apontaram muito mais para impossibilidades da construção de uma vontade nacional popular que tenha capacidade de ser hegemônica nas sociedades latino-americanas do que para perspectivas de êxito e de ruptura com esse processo de globalização. Isso não significa que não seja uma análise marxista ou que o autor não buscasse até um determinado momento colocar-se ao lado da tentativa da construção dessa vontade. Cabe à história provar que, quanto a essa impossibilidade, Cardoso estava errado.

Principais obras

  • Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional (1962)
  • Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico (1964)
  • Dependência e Desenvolvimento na América Latina (com Enzo Faletto) (1967)
  • Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes (1971).