Fernandes, Florestan
Florestan Fernandes nasceu no dia 22 de julho de 1920 na cidade de São Paulo, filho de uma imigrante portuguesa de origem camponesa, Dona Maria Fernandes, analfabeta, lavadeira e empregada doméstica. O menino Florestan viveu algum tempo na casa de uma família abastada, os Bresser de Lima, patrões de sua mãe, que se tornaram os seus padrinhos. Para ajudar no sustento da casa, começa a trabalhar aos seis anos de idade e abandona o ensino formal aos nove. A experiência de criança trabalhadora o marcou profundamente e, nos seus relatos autobiográficos, costumava mencionar que seu horizonte social era lumpenproletário, uma dimensão fundamental para compreender suas relações com o marxismo revolucionário. Volta a estudar aos 17 anos e conclui o ensino médio em pouco tempo. Ingressa no curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP) em 1941, bacharelando-se em 1943 e licenciando-se em 1944. Em 1947 obtém o título de mestre em Sociologia e Antropologia pela Escola Livre de Sociologia e Política e seu doutorado pela cadeira de Sociologia II em 1951 na USP. Entre 1945 e 1969 atua como docente da USP até ser aposentado compulsoriamente pela ditadura militar (1964-1985). Quando de sua cassação, Florestan ocupava o posto de professor catedrático da cadeira de Sociologia I. Entre 1969 e 1972 foi professor na Universidade de Toronto, quando retorna ao Brasil e amarga um período de isolamento intelectual. Em fins da década de 1970 e início dos anos 1980 sua militância marxista se expressa em seus artigos e colunas de jornal. A partir de 1986, filia-se ao Partido dos Trabalhadores (PT) e exerce dois mandatos consecutivos como deputado federal (1987-1990; 1991-1995), o primeiro deles na Assembleia Constituinte. Falece aos 75 anos no dia 10 de agosto de 1995.
A vida acadêmica de Florestan Fernandes na USP é marcada pelo diálogo com o pensamento de Marx com o objetivo de incorporar suas contribuições teóricas e metodológicas à Sociologia. Ainda como estudante de ciências sociais, em 1943 ingressa no Partido Socialista Revolucionário (PSR), trotskista, seção da IV Internacional no Brasil. Por conta de tal militância traduziu e introduziu o livro Para a crítica da economia política, de Marx, publicado em 1946 pela editora Flama. Florestan deixa o PSR no início dos anos 1950. O diálogo com o marxismo nesse momento possui o intuito de pensar as relações da sociologia com a filosofia e as demais ciências sociais, debatendo criticamente as subdivisões da disciplina diante dos problemas teóricos, metodológicos e práticos de participação do sociólogo nos processos políticos. Nos anos 1950, Florestan foi pioneiro em pensar a síntese das correntes clássicas das ciências sociais a partir de Durkheim, Weber e Marx. Essas contribuições podem ser analisadas em obras como Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1959), Ensaios de sociologia geral e aplicada (1960a) e Elementos de sociologia teórica (1970). Marx era um autor decisivo nessa fase para se pensar a síntese teórica e metodológica na sociologia, a partir da crítica ideológica das perspectivas políticas das vertentes clássicas e modernas das ciências sociais. Outro pensador fundamental nesse debate foi Karl Mannheim, com cuja obra Florestan procurou sempre dialogar criticamente focalizando em especial suas concepções da intelligentsia e do planejamento democrático. A obra de Marx era aproveitada em termos da construção de uma sociologia histórica ou diferencial, de maneira articulada a outras subdivisões como a sociologia sistemática (Weber), a sociologia comparada (Durkheim) e a sociologia aplicada (Mannheim). Não havia nessa fase uma orientação marxista em sentido estrito, mas uma tentativa de estabelecer um diálogo do legado de Marx com a Sociologia.
Ainda na década de 1950, as pesquisas empíricas de Florestan Fernandes se voltavam para questões pertinentes à sociologia do desenvolvimento, investigando os problemas de mudança social no Brasil (Fernandes, 1960b). O uso combinado de uma perspectiva sincrônica estrutural-funcionalista e do enfoque diacrônico da sociologia histórica embasa o diálogo crítico que Florestan irá manter com as teorias da modernização, então hegemônicas internacionalmente. Sua tese de livre-docência defendida em 1953 versa sobre o método funcionalista. O funcionalismo de Florestan Fernandes era um tanto atípico, pois encarava diretamente as tensões e conflitos emergentes da própria estrutura social e os processos sociais de mudança histórica, em particular quando focalizados na passagem de um tipo específico de sociedade a outro: por exemplo, a transição da sociedade colonial/neocolonial, escravista, de castas e estamentos para a sociedade moderna, capitalista-industrial, baseada na categoria do trabalho livre e de classes. Octavio Ianni afirma, a esse respeito, que as concepções de Florestan Fernandes sobre “função social e análise funcionalista [...] apoiam-se amplamente numa concepção dialética, não somente do ser social mas também do conhecer sociológico” (Ianni, 1976, p. 128).
No esforço crítico de superação dos pressupostos epistemológicos das teorias da modernização, Florestan Fernandes aprofunda na década de 1960 o estudo sociológico do subdesenvolvimento valendo-se de sugestões metodológicas de Durkheim, Weber e Marx (Fernandes, 1972 [1968]). Os três clássicos eram aproveitados segundo problemáticas específicas e de acordo com níveis diferenciados de apreensão das transformações históricas da estrutura social. Em relação às contribuições de Marx para o estudo sociológico do subdesenvolvimento, Florestan argumenta que sua explicação do modo de produção capitalista e as categorias de mais-valia absoluta e relativa são válidas, “ao nível estrutural, para as sociedades capitalistas desenvolvidas, subdesenvolvidas ou em transição de um estado para outro” (Fernandes, 1972, p. 31). Acrescenta que seria preciso adequar três pontos das teorias de Marx para a investigação do subdesenvolvimento: “a teoria da acumulação capitalista”, “a teoria da mercantilização do trabalho” e o pressuposto das “contradições entre as forças produtivas e as formas de organização da produção capitalista” (Fernandes, 1972, p. 32-41). Não se tratava de uma junção eclética das três correntes clássicas, mas de uma tentativa de explicação sociológica original a partir da problematização de níveis diferenciados da realidade histórica concreta.
Seria, entretanto, no enfrentamento de lutas políticas mais diretas que Florestan Fernandes iria acentuar os vínculos entre suas reflexões sociológicas e uma práxis de resistência ao avanço conservador no Brasil. Na Campanha de Defesa da Escola Pública entre 1959 e 1962, no aprofundamento de seus estudos sobre a discriminação racial com a defesa da tese de cátedra A integração do negro na sociedade de classes em 1964 e, por fim, na sua participação no movimento da reforma universitária (1967-1969) iriam emergir suas categorias histórico-sociológicas de capitalismo dependente e autocracia burguesa. É certo que tais desdobramentos teóricos só ganham maior relevância entre os anos de 1970 e 1975. Porém, a própria noção de “autocracia burguesa” deita raízes em fins da década de 1960, no seu envolvimento solidário com o movimento democrático português contra o fascismo salazarista. Entre 1958 e 1964, alguns dos ex-alunos e assistentes de Florestan Fernandes na cadeira de Sociologia I da USP formaram um grupo de estudos para discutir O Capital, incorporando a leitura de nomes do marxismo ocidental, como Lukács e o Sartre de A crítica da razão dialética (1960). Por uma lógica de deslocamentos intergeracionais, o mestre Florestan não participa do grupo, mas irá dialogar criticamente com as novas tendências. Além das leituras das obras de Marx e Engels, sua formação marxista se situava nos horizontes políticos das II e III Internacionais com preferências para Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo. Em certo sentido, Florestan percebia certo modismo na incorporação dos marxismos ocidentais e o essencial seria, a seu ver, estabelecer diálogos pensando-se nas questões concretas da luta socialista no Brasil e América Latina. Numa entrevista concedida em meados da década de 1980, irá rejeitar mesmo uma “postura colonial” à esquerda, argumentando que a incorporação de autores como “Lukács, Althusser, Sartre, Goldman, Gramsci, Lefort, Castoriadis, Benjamin” deveria ser efetivada “em relação ao eixo e aos ‘ciclos’ do nosso pensar” (Fernandes, 2020, p. 282-283 e p. 301). A chave para entender a originalidade do marxismo de Florestan Fernandes seria apreender a forma como procurou assimilar as diferentes tradições revolucionárias para pensar as realidades latino-americanas.
A identificação de Florestan Fernandes com o marxismo revolucionário, numa perspectiva original de análise e transformação das formações latino-americanas, se torna mais nítida quando de seu exílio canadense entre 1969 e 1972. Nesse momento passa a investigar as revoluções socialistas do século XX (em especial Rússia, China, Cuba e Vietnam), os processos guerrilheiros, as ditaduras civis-militares e as características histórico-específicas do fascismo na América Latina. No início dos anos 1970 irá aprofundar seus conhecimentos das teorias revolucionárias, com especial ênfase nas obras completas de Lênin e em pensadores anticoloniais como Frantz Fanon e José Martí. Num ensaio sobre as “revoluções interrompidas”, expressará a opinião de que José Carlos Mariátegui, Caio Prado Jr e Sergio Bagú teriam sido os pioneiros de uma interpretação marxista original da América Latina (Fernandes, 1981b, p. 72). Aliás, Florestan foi o responsável pelo prefácio da primeira edição brasileira de Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, de Mariátegui (1975), e há em seu arquivo pessoal cartas remetidas por Bagú (datadas de 1970 e 1971). Aquela que ficou conhecida como sua obra clássica entre a maioria de seus intérpretes, A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica (1975), apresenta como categorias centrais as noções de capitalismo dependente e autocracia burguesa.
Na terceira parte do livro, irá mobilizar as teorias marxistas do imperialismo para desvelar dialeticamente a contraface da dependência nas formações periféricas. A expropriação dual do excedente econômico pelas burguesias internas pró-imperialistas e externas, representadas pelas frações hegemônicas do capital financeiro, conduzem ao padrão de superexploração da força de trabalho. O Estado burguês que se forja na periferia do sistema assume padrões estruturais de uma democracia e sociedade civil restritas “aos de cima”, aliadas ao controle autocrático do poder pelos funcionários orgânicos das classes dominantes (em geral provenientes das classes médias), oscilando entre momentos de demagogia populista e regimes abertamente contrarrevolucionários ou ditaduras a céu aberto. As tentativas de mudanças sociais progressistas são constantemente cooptadas no sentido de preservação do status quo, como no caso do processo de redemocratização brasileira da década de 1980 conhecido como Nova República. Florestan Fernandes costumava escrever Nova República entre aspas por considerar que a transição “lenta, gradual e segura”, tutelada pelos militares, atuava como uma forma de institucionalizar a ditadura e resguardar a reserva última de poder das classes dominantes na ameaça de uso da violência pelo aparelho de Estado. O capitalismo dependente se sustenta pela combinação de formas de exploração e dominação de classes especificamente capitalistas baseadas na mais-valia relativa – imbricadas com momentos de intensificação da mais-valia absoluta e reprodução em novos patamares dos padrões espoliativos de acumulação primitiva entre centros e periferias – com relações colonialistas, patriarcais e racistas na divisão social do trabalho. Esse sistema secreta uma massa de despossuídos e marginalizados que resultam funcionais na manutenção dos altos níveis de superexploração das classes trabalhadoras. O caso brasileiro seria um padrão mais ou menos comum na América Latina, com suas variantes coloniais, neocoloniais e de capitalismo dependente.
A origem lumpenproletária de Florestan Fernandes o tornou sensível para perceber a importância das massas despossuídas e marginais nos processos revolucionários latino-americanos. Por isso, sua concepção de movimento socialista e partido político se apresenta ampla o suficiente para acolher as massas, os sem-classe, os sem-teto, os sem-terra, os povos originários, os negros, as classes trabalhadoras e todos os condenados do sistema. As forças motrizes da revolução socialista no Brasil e demais países da América Latina são as massas despossuídas e as classes trabalhadoras. As mudanças sociais interrompidas no patamar da contrarrevolução burguesa devem ser aceleradas “pelos de baixo” num processo de intensificação de “revoluções dentro da ordem” que precisam se transformar numa “revolução contra a ordem”. As etapas históricas das revoluções democrática e socialista não são sucessivas, mas simultâneas e se iluminam reciprocamente. Por isso, um partido efetivamente revolucionário de massas precisa se constituir a partir de baixo pela aglutinação das demandas populares represadas e com a solidariedade efetiva das classes trabalhadoras. No Brasil, os trabalhadores são majoritariamente negros, por isso Florestan chega a falar do potencial explosivo e emancipatório da fusão entre lutas de raça e classe para desagregar as estruturas de exploração e dominação do capitalismo dependente. A luta eleitoral e parlamentar não pode estar dissociada dos movimentos de massas e da maré montante de pressão popular das classes trabalhadoras. O marxismo de Florestan Fernandes se caracteriza pelo esforço constante de traçar caminhos para a revolução socialista no Brasil e América Latina.
Os livros que reúnem o legado do socialismo revolucionário em Florestan Fernandes e aprofundam sua noção de capitalismo dependente, não citados anteriormente, são os seguintes: O negro no mundo dos brancos (2007), Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina (1973), Circuito fechado (1976), A sociologia no Brasil (1977; segunda parte), Lênin (1978), Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo (1979a), Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana (1979b), A natureza sociológica da sociologia (1980a), Brasil: em compasso de espera (1980b), Movimento socialista e partidos políticos (1980c), O que é revolução (1981a), A ditadura em questão (1982), Nova República? (1986), Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo (1989a), O significado do protesto negro (1989b), O PT em movimento (1991), Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da era atual (1994) e Em busca do socialismo: últimos escritos & outros textos (1995). Uma lista completa das publicações de Florestan Fernandes pode ser consultada em Soares & Costa (2021, p. 353-359), com referência às sucessivas reedições de seus livros.
Referências bibliográficas
- Fernandes, Florestan. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959
- Fernandes, Florestan. Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Pioneira, 1960a
- Fernandes, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1960b
- Fernandes, Florestan. Elementos de sociologia teórica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970
- Fernandes, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972 [1968]
- Fernandes, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1973
- Fernandes, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975
- Fernandes, Florestan. Circuito fechado. São Paulo: Hucitec, 1976
- Fernandes, Florestan. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977
- Fernandes, Florestan. Introdução. In: Fernandes, F. (org.) Lênin. São Paulo: Ática, 1978
- Fernandes, Florestan. Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo. São Paulo: Hucitec, 1979a
- Fernandes, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979b
- Fernandes, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980a
- Fernandes, Florestan. Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980b
- Fernandes, Florestan. Movimento socialista e partidos políticos. São Paulo: Hucitec, 1980c
- Fernandes, Florestan. O que é revolução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981a
- Fernandes, Florestan. Poder e contrapoder na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1981b
- Fernandes, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982
- Fernandes, Florestan. Nova República? Rio de Janeiro: Zahar, 1986
- Fernandes, Florestan. Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1989a
- Fernandes, Florestan. O significado do protesto negro. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989b
- Fernandes, Florestan. O PT em movimento. São Paulo: Cortez, 1991
- Fernandes, Florestan. Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da era atual. São Paulo: Hucitec, 1994
- Fernandes, Florestan. Em busca do socialismo: últimos escritos & outros textos. São Paulo: Xamã, 1995
- Fernandes, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007
- Fernandes, Florestan. O desafio educacional. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2020
- Ianni, Octavio. Sociologia da sociologia na América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976
- Mariategui, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975
- Sartre, Jean-Paul. Critique de la raison dialectique. Paris: Gallimard, 1960
- Soares, Eliane Veras, Costa, Diogo Valença de Azevedo. Florestan Fernandes: trajetória, memórias e dilemas do Brasil. Chapecó: Marxismo21, 2021