Moraes, João Quartim de

Cesar Mangolin

João Caros Kfouri Quartim de Moraes, intelectual brasileiro, comunista, nascido em 23 de junho de 1941. Estudou na Universidade de São Paulo (USP), entre 1959 e 1964, onde se graduou em Ciências Jurídicas e Sociais e em Filosofia. Em 1965, foi contratado como professor de Filosofia Antiga e, nomesmo ano, cursou a especialização em Filosofia Antiga, na antiga Faculté des Lettres et Sciences Humaines (atual Université Paris I-Panthéon-Sorbonne). De volta ao Brasil em 1968, reassumiu a docência no curso de Filosofia da USP; no mesmo ano integrou-se ao combate revolucionário clandestino contra a ditadura militar no Brasil, instalada com o golpe de 1964. Ele foi cofundador e dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), participando da primeira fase da luta armada contra a ditadura (1968-1969). Perante o Ato Institucional nº5 (13/12/1968), que instaurou o terrorismo de Estado, ele defendeu a necessidade de um ajuste tático, concentrando o trabalho político clandestino nos meios operários e estudantis e reduzindo o ritmo das ações armadas, que não mais estavam articuladas com o ascenso do movimento popular que ocorrera em 1968. Uma manobra que fez prevalecer a tendência militarista afastou-o da organização, levando-o a seguir o caminho do exílio por longos anos (1969-1982). 

Prosseguiu sua formação e atuação acadêmica no exílio francês: Troisième Cycle de Science Politique (1971-1973) e Doctorat d'État en Science Politique, (1974-1982) na Fondation Nationale de Science Politique da Academia de Paris, com a tese Les militaires et les régimes politiques au Brésil: 1889-1979. Entre 1971 e 1979 foi professor de Filosofia na Université Paris 8-Vincennes. De volta ao Brasil, em 1982 integrou-se aos quadros da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), como pesquisador e docente da graduação e pós-graduação, coordenação de curso e direção do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas – IFCH. Após a aposentadoria, em 2005, continuou vinculado à universidade, como professor colaborador.

No exílio, Quartim foi responsável pela seção latino-americana da revista Afrique-Asie, com a qual continuou a colaborar depois do retorno ao Brasil. Organizou a Revista Debate, importante instrumento de interlocução dos exilados brasileiros das distintas organizações, tendo em vista a reorganização do movimento revolucionário, num amplo debate sobre os problemas teóricos da revolução brasileira, mas também um esforço de crítica e autocrítica da experiência da luta armada. A prática teórica e a prática política aparecem também unidas em livros e artigos do período. Exemplos disso são: a publicação dos artigos "Regis Debray and the brazilian Revolution" (New Left Review, 1970), "La guérrilla urbaine au Brésil" (Les Temps Modernes,1970) e "La nature de classe de l’État brésilien" (publicado em dois volumes de Les Temps Modernes, 1971) e do livro Dictatorship and armed struggle in Brazil (publicado pela New Left Books, na Inglaterra, e pela Monthly Review, nos EUA, respectivamente em 1971 e 1972), que também teve uma edição italiana, em 1972, com o título Brasile: dittatura e resistenza. 

De volta ao Brasil, em 1982, a frente da luta teórica foi a trincheira principal da militância de Quartim: artigos, livros, palestras, debates, colaboração com movimentos populares e partidos políticos. Em 2002 integrou-se no Partido Comunista do Brasil (PcdoB), tornando-se mais adiante membro do seu Comitê Central. 

O desmoronamento do bloco socialista do Leste europeu abriu caminho para a ofensiva do neoliberalismo, colocando o movimento comunista internacional em defensiva estratégica. Foram muitos os que desertaram, capitulando perante a ofensiva ideológica do imperialismo estadunidense e de seus satélites, que recorriam a seu quase total monopólio dos grandes meios de comunicação de massa para impor o “pensamento único” neoliberal, que intoxicou os imbecis, os covardes e os oportunistas com os mitos complementares do “fim da história”, da “globalization” etc. Nesse período cinzento e de horizonte baixo, João Quartim participou a fundo da concepção, organização e execução da obra coletiva História do Marxismo no Brasil (publicada em seis volumes), da Revista Crítica Marxista (cujo primeiro número apareceu em 1994) e do Centro de Estudos Marxistas-Cemarx ligado ao IFCH da Unicamp (fundado em 1996), além do esforço de análise das experiências socialistas e de defesa da obra dos grandes fundadores do materialismo histórico e revolucionário: Marx, Engels e Lênin.

Ele produziu uma obra densa e volumosa, que percorre um amplo leque de temas históricos, políticos e filosóficos. Estudou a filosofia antiga e a tradição materialista, com obras publicadas sobre Aristóteles e sua concepção objetiva do tempo (em contraposição à tendência subjetivista moderna, como aparece em Kant) e sobre Epicuro, particularmente a ética, o atomismo e as noções do vazio, do movimento, do acaso e do encontro, demonstrando, originalmente, que a tese do clinamen, que aparece no poema de Lucrécio, De rerum natura, não corresponde à teoria produzida por Epicuro e, ao mesmo tempo, retirando dessa noção uma contribuição para a compreensão do comportamento dos seres vivos, contrário à noção mecânica e determinista do movimento. 

Ao lado da reflexão filosófica sobre a articulação entre as noções do movimento e do encontro, que envolve a relação entre necessidade e acaso, ele estudou Darwin e a teoria da evolução, demonstrando a articulação entre a filosofia materialista e o princípio da evolução no artigo “O vazio e o encontro no materialismo antigo”, incluído em um livro organizado pelo próprio Quartim -Materialismo e evolucionismo: epistemologia e história dos conceitos (2007), resultado de um seminário realizado em 2006 no Centro de Lógica, Epistemologia e História das Ciências-CLE-UNICAMP. Tal articulação, que reúne a filosofia antiga, a teoria da evolução e o materialismo dialético, foi retomada no artigo “A contribuição de Engels à história natural do homem” (2020), publicado num livro que comemora os 200 anos do nascimento de Engels. O artigo não apenas expõe as descobertas de Engels, mas dialoga com autores da atualidade e nos explica temas que Engels não poderia desenvolver com as informações do seu tempo, contribuindo consistente e originalmente para o desenvolvimento do marxismo e da dialética da natureza.

Produziu obras sobre a filosofia política renascentista e moderna, a crítica do humanismo, o pensamento de Maquiavel, Erasmo, o debate envolvendo a Reforma, a Inquisição, o Estado Absolutista etc. Desenvolveu a crítica do liberalismo e da ideia do “valor universal da democracia”, mostrando o caráter mistificador das pretensões universais atribuídas à democracia. Expôs as origens feudais do liberalismo e seu percurso histórico, passando pelos pensadores iluministas, até a articulação com as ditaduras do século XX e com o fascismo. 

Estudioso da obra de Marx, Engels e Lênin, suas contribuições ao pensamento marxista aparecem na abordagem de conceitos fundamentais e na própria análise crítica da obra dos fundadores do materialismo histórico. Aborda o debate sobre a continuidade ou ruptura no pensamento de Marx e critica as tendências idealistas de correntes e pensadores do marxismo. A partir do materialismo histórico, trata da dialética, do evolucionismo e dos modos de produção, dos problemas relacionados à ciência e à produção filosófica e utiliza as categorias marxistas para a análise das estruturas e contradições do mundo atual. Analisa os processos e a importância histórica das revoluções socialistas do século XX, em particular a Revolução Russa, de 1917, e aponta, a partir de Lênin, quais são os desafios do movimento comunista e suas possibilidades.

Sobre o Brasil e a América Latina, analisou a colonização, a contribuição de importantes teóricos nas várias fases históricas, a integração latino-americana e brasileira e suas contradições, o problema da dependência, o imperialismo e o anti-imperialismo. 

Sobre o marxismo e o movimento comunista no Brasil, destacam-se os textos publicados na História do Marxismo no Brasil, diversos artigos e livros, publicados no Brasil e em outros países, analisando a história do movimento comunista e o desenvolvimento do marxismo, as inflexões programáticas, a influência e a interpretação de Marx, Engels, Lênin e Stalin pelos comunistas brasileiros, o impacto das revoluções socialistas na formação do movimento comunista no Brasil. Também foi parceiro na produção teórica e divulgador da obra do italiano Domenico Losurdo, com o qual manteve estreita colaboração.

Além das obras mencionadas sobre a ditadura militar e a luta contra a ditadura, Quartim também analisou o papel dos militares no Brasil e na América Latina. A mencionada tese de doutorado já dava a amplitude da abordagem sobre o tema, que se desdobrou em farto material, tanto da análise histórica, como A esquerda militar no Brasil (publicado em dois volumes), quanto da análise política do papel dos militares nas formações sociais com as características brasileiras. 

Em 2023, a Fundação Fausto Castilho e o Centro de Memória da Unicamp publicaram um livro em sua homenagem (Estudos e ensaios em homenagem a João Quartim de Moraes): além de uma entrevista e de uma sinopse bibliográfica, o livro reúne doze artigos escritos por importantes intelectuais do Brasil e de outros países, além de amigos e ex-alunos. Um singelo reconhecimento da importância e da grandeza da obra desse imprescindível comunista, que enfrentou décadas plenas de lutas e desafios ao movimento comunista em todo mundo e persiste na luta, sem abandonar seu posto de combate.  

Principais obras de autor

Livros

Dictatorship and armed struggle in Brazil. Londres: New Left Books, 1971 e Nova Iorque: Monthly Review, 1972.

Brasile: dittatura e resistenza. Milano: Gabriele Mazzota, 1972.

Les militaires et les régimes politiques au Brésil de Deodoro à Figueiredo 1889-1979. Thèse de doctorat/Science Politique. Institut d’Études Politiques, Paris. 1982. 

A esquerda militar no Brasil (vol1). São Paulo: Siciliano, 1991 e Expressão Popular, 2002.

A argumentação dialética na definição aristotélica do tempo. Campinas: IFCH, 1992.

A esquerda militar no Brasil (vol2). São Paulo: Siciliano, 1994.

Epicuro: as luzes da ética. São Paulo: Moderna, 1998.

Erasmo e Lutero: teologia e reforma do cristianismo. Primeira Versão, UNICAMP/Campinas, v. n 82, 1999.

Liberalismo e ditadura no Cone Sul. Campinas: IFCH-Unicamp, 2001.

La lotta antimperialista in America Latina. Nápoles: La Città del Sole, 2002.

Máximas principais de Epicuro: introdução e tradução comentada. Campinas: IFCH, 2006.

Izquierda militar y tenientismo en Brasil. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2010.

Epicuro: máximas principais. São Paulo: Loyola, 2010.

Epicuro: as Sentenças Vaticanas. São Paulo: Loyola, 2014.

Losurdo: presença e permanência (org). São Paulo: Anita Garibaldi, 2020.

Imperialismo. São Paulo / Jundiaí: Fibra e Edições Brasil, 2024.

Livros em coautoria 

Moraes, João Quartim de; Huberman, Leo; Sweezy, Paul M.; Dreßen, Wolfgang Focus und Freiraum: Debray, Brasilien, Linke in den Metropolen. Berlim: Klaus Wagenbach, Berlin, 1970.

Moraes, João Quartim de; REIS FILHO, Daniel Aarão (Org). História do Marxismo no Brasil - O impacto das Revoluções. Vol.1. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

Moraes, João Quartim de (Org). História do Marxismo no Brasil – Os influxos teóricos. Vol.2. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

Moraes, João Quartim de (Org). História do Marxismo no Brasil - Teorias. Interpretações. Vol.3. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.

Moraes, João Quartim de; DEL ROIO, Marcos (org). História do marxismo no Brasil – Visões do Brasil. Vol.4. Campinas: Unicamp, 2000

Moraes, João Quartim de (org). Materialismo e evolucionismo: epistemologia e história dos conceitos. Campinas: Unicamp/CLE, 2007.

Moraes, João Quartim; Azzara, S. (Org.); Pautasso, D.(org.). Losurdo. Presença e permanência (organização e Estudo Introdutório). São Paulo: Anita Garibaldi, 2020. 

Moraes, João Quartim de; Silva, Ligia Osório. Novo mundo: metamorfoses da colonização. Campinas: Editora da Unicamp, 2023

Artigos e capítulos de livro

"Sobre as origens da dialética do trabalho". Teoria e Prática, n. 3, 1967. 

"Régis Debray and the Brazilian Revolution". Londres: New Left Review, v. n 59, p. 61-82, 1970.

"La nature de classe de l’État bresilien" (I). In: Les Temps Modernes, nº 304, Paris: 1971 a, p.651-675. 

"La nature de classe de l’État bresilien" (II). In: Les Temps Modernes, nº 305, Paris: 1971 b, p.853-878. 

A natureza de classe do Estado brasileiro. In: PINHEIRO, Milton (org). Ditadura: o que resta da transição. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 61-103.

"O programa nacional-democrático: fundamentos e permanência". In: Del Roio, Marcos; Moraes, João Quartim de (orgs). História do marxismo no Brasil. Vol.4. Campinas: Unicamp, 2000, p. 151-209.

"Continuidade e ruptura no pensamento de Marx: do humanismo racionalista ao materialismo crítico". In: Boito, Armando et alli (orgs). A obra teórica de Marx: atualidade, problemas e interpretações. São Paulo: Xamã, 2000b, p. 23-40

"O humanismo e o homo sapiens". Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Revan, n.21, 2005, p.28-51.

"O vazio e o encontro no materialismo antigo". In: MORAES, João Quartin de (org) Materialismo e evolucionismo: epistemologia e história dos conceitos. Campinas: Unicamp/CLE, 2007.

"A contribuição de Engels à história natural do homem". In: Rodrigues, Theofilo (org). Engels 200 anos: ensaios de teoria social e política. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020, p.99-112.

"Origens feudais do liberalismo". Conjectura, Caxias do Sul, v. 23, n. spe3, p. 51-68, 2018.

"A herança eleata e a ambigüidade do não-ser no materialismo antigo". São Paulo: Hypnos, n.9, p. 16-28, 2004.

"A objetividade do tempo no aristotelismo". São Paulo: Hypnos, v. 18, p. 15-28, 2007.

"Um outro olhar sobre Stalin". Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Revan, n.18, 2004, p.152-160. 

"A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo". Cadernos de História e Filosofia da Ciência (UNICAMP) , CLE / UNICAMP, v. 14, n.1, p. 7-47, 2004.

"Os sentidos do tempo em Aristóteles". Kriterion , Belo Horizonte, n.107, p. 148-151, 2003.

"Contra a canonização da democracia".Crítica Marxista, São Paulo, Boitempo, v.1, n. 12, 2001, p. 9-40. 

"Liberalismo e fascismo, convergências". Crítica Marxista, São Paulo, Xamã, v.1, n.8, 1999, p.11-42.

"La evolución de la idea de democracia de Rousseau a Robespierre". Revista de Ciencias Sociales, Quilmes, v. 5, 1996.

"La pluie et le hasard". In: Alain Gigandet. (Org.). Lucrèce et la modernité: le vingtième siècle. Paris: Armand Colin, 2013, p. 97-117.

"L'aleatorio e la logica del concreto". In: Barberini C. A.. (Org.). Marx e la storia. Con un'antologia di testi. Milão: Unicopli, 2009, v. 1, p. 186-198.

"A influência do lenismo de Stalin no comunismo brasileiro". In: Moraes, João Quartim de; Reis Filho, Daniel Aarão (Org). História do Marxismo no Brasil - O impacto das Revoluções. Vol.1. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 109-160.

"Sodré, Caio Prado e a luta pela terra". In, Cunha, Paulo Ribeiro. Cabral, Fátima (orgs.). Nelson Werneck Sodré: Entre o Sabre e a Pena. São Paulo: Editora UNESP, 2006. 

"La deviazione e l'aleatorio". In: Vittorio Morfino. (Org.). Quaderni Materialisti 5-Spinoza resistenza e conflito. Milão: Ghibli, 2006, v. 5, p. 183-204.

"VPR: os leninistas e os outros". In: Antonio Carlos Mazzeo; Maria Izabel Lagoa. (Org.). Corações vermelhos. São Paulo: Cortez, 2003, p. 227-238.