Moura, Clóvis

Gabriel dos Santos Rocha

Clóvis Steiger de Assis Moura, brasileiro, nasceu em Amarante (Piauí) no dia 10 de junho de 1925; faleceu na capital do estado de São Paulo no dia 23 de dezembro de 2003. Foi um intelectual marxista autodidata, historiador, sociólogo, jornalista, crítico literário, poeta, militante comunista e do movimento negro. Em 1945 ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na década de 1960 integrou o Partido Comunista do Brasil (PcdoB), agremiação originada de uma dissidência do PCB em 1962. Ao longo da vida atuou como jornalista militante na imprensa de esquerda, e profissionalmente em veículos de maior abrangência (Mesquita, 2002; Oliveira, 2009; Malatina, 2022). Moura teve contribuições importantes para o marxismo no campo teórico e na luta política e social: a relação entre escravidão, racismo e capitalismo, e a questão racial na luta classes são temas fundamentais em sua produção intelectual e militância.

Suas principais contribuições teóricas no marxismo estão na historiografia e na sociologia, ainda que sua produção também dialogue com outras áreas do conhecimento como a economia política, a antropologia, a etnologia, a crítica literária e os estudos culturais. Ocupou-se fundamentalmente de problemas brasileiros, embora tenha dedicado algumas passagens de sua obra à América Latina e ao Caribe (Moura, 2021). O conjunto de sua produção pode ser visto como um programa de interpretação do processo histórico brasileiro desde o período colonial ao republicano (Farias, 2019) no qual se destacam: 1) a escravidão e a colonização na formação social, política, econômica e cultural do Brasil; 2) as insurreições negras contra a escravidão na perspectiva da luta de classes; 3) o racismo como ideologia de dominação no capitalismo dependente brasileiro; 4) as organizações negras na luta contra o racismo no Brasil pós-abolição.

Para Moura não bastava interpretar, era também necessário transformar a realidade. Teoria e práxis, caminhavam juntas em sua produção intelectual. Assim, ao levantar os problemas brasileiros, não se absteve de propor alternativas e defender o socialismo. Considerava importante o engajamento político e social dos intelectuais, e foi um crítico contumaz do quietismo por parte de setores da academia diante dos problemas sociais (Moura, 1978).

A luta de classe no escravismo

Apesar do reconhecimento relativamente tardio por parte da academia, Moura ganhou notoriedade por estudar as insurreições negras do período escravista, tratando-as sistematicamente, e não como meras erupções espontâneas sem qualquer impacto nas relações de produção e na sociedade. O autor considerou as várias formas de resistência dos escravizados como elementos dinamizadores e de negação do sistema escravista, a exemplo das fugas, insurreições, guerrilhas, quilombos, atentados contra senhores e feitores, suicídios, abortos etc. O autor denominou quilombagem, esse processo de resistência constante ao escravismo (Moura, 2023a).

Os quilombos, insurreições e guerrilhas foram objetos primordiais de suas análises, e deram o subtítulo de seu primeiro livro, Rebeliões da Senzala (1959), cuja primeira edição teve pouca repercussão, porém, posteriormente veio a se tornar um clássico sobre o tema, sobretudo, a partir da segunda edição de 1972. Neste livro, Moura lançou as bases interpretativas da escravidão que foram desenvolvidas ao longo de quase toda sua obra, em produções posteriores.

Para o autor, os escravizados que se rebelavam, sobretudo os quilombolas e insurretos eram agentes de negação do sistema escravista. Ainda que os escravizados – devido a própria natureza da escravidão colonial – não tivessem condições objetivas de projetarem um sistema econômico, político e social alternativo, suas rebeliões, guerrilhas e quilombos, atentavam contra a propriedade escravista. Deste modo, Moura não apenas conferiu sentido político ao protesto negro daquele período, como também, considerou que a dinâmica, o desenvolvimento e a superação do escravismo deveriam ser compreendidos a luz do antagonismo entre escravizado e escravocrata, as classes fundamentais daquele sistema econômico e social.

Ao abordar a escravidão Moura se contrapôs à ideia de “antagonismos em equilíbrio” amplamente defendida por Gilberto Freyre (2013), a qual contribuiu para a formulação do chamado “mito da democracia racial” (apesar da expressão não ter sido cunhada por Freyre, suas teses foram fundamentais na formulação desse “mito”). Sem desprezar as diferentes técnicas de dominação senhorial, Moura enfatizou a violência como elemento central da sociedade escravista. No entanto, ao contrário de muitos autores que tratavam mais da violência senhorial, Moura se importou com a violência do escravizado. Assim se contrapôs, não apenas à Freyre, mas também às concepções que embasariam a teoria do escravo-coisa (Cardoso, 2003). Se por um lado, o escravismo buscava reduzir africanos e seus descendentes à condição social de bem semovente, por outro, os escravizados negavam tal condição quando se rebelavam. O status de coisa encontrava seus limites na própria ordem escravista quando um escravizado era julgado por atentar contra a propriedade ou contra a vida de seu algoz (Gorender, 2016). Se a violência senhorial era um fator de desumanização do africano e seus descendentes, a violência do escravizado era um fator de negação da desumanização imposta pela ordem senhorial. Assim, a violência era uma expressão de humanidade do escravizado.

Além dos quilombos e rebeliões de cativos, Moura também estudou a participação dos negros em insurreições populares dos séculos XVIII e XIX. Os afro-brasileiros também participaram ativamente de movimentos transformadores na História, a exemplo da Independência (1822) e da Abolição (1888), porém, via de regra, foram excluídos das esferas de poder de decisão e dos projetos dos vencedores (Moura, 2023).

Modo de produção escravista

Moura compreendeu o surgimento do Brasil na história como parte do processo de expansão mercantil europeia nos séculos XV e XVI. Assim como as demais colônias que deram origem aos países latino-americanos, o Brasil colonial resultou de um empreendimento comercial europeu. Em uma formulação muito próxima do sentido da colonização aventado por Caio Prado Júnior (1957), Moura considerou três elementos que constituíam o tripé econômico e político das metrópoles, a saber: 1) grandes companhias navegadoras, dentre as quais as empresas de traficantes de escravizados; 2) grandes plantações cultivadas com trabalho escravo; 3) monopólio comercial metropolitano (MOURA, 2014a). Por três séculos e meio a escravidão foi a base da vida material e social do Brasil: o sistema escravista impôs o seu ritmo de desenvolvimento e crescimento a todos os demais níveis de interação da sociedade brasileira, determinando também a extensão geográfica do país, além do conteúdo das relações étnico-raciais (Moura, 2023, p.33).

Tal caracterização foi exposta já em Rebeliões da Senzala (1959) e desenvolvida pelo autor em obras posteriores. Contudo, sem abandonar esta visão do sentido da colonização, a partir dos anos 1980, Moura passou a adotar a conceito de modo de produção escravista em suas análises. Notamos que o conceito passou a integrar o léxico de Moura após a publicação de O Escravismo Colonial (1978 [2016]), no qual Jacob Gorender defendeu a tese do “modo de produção escravista colonial”. Neste livro Gorender buscou se diferenciar de autores que, ao tratar da formação social brasileira, enfatizavam um presumido caráter feudal (Sodré, 1979), patriarcal (Freyre, 2013), ou a estrutura colonial exportadora (Prado Jr., 2011).

Moura incorporou a categoria modo de produção escravista em suas análises sem abdicar da influência de Prado Jr. sobre o sentido da colonização, ao mesmo tempo que se diferenciou deste, por um momento, e em algum nível, ao afirmar que “a racionalidade desse modo de produção não é a mesma do capitalismo, isto porque as leis econômicas que regem o funcionamento dos dois sistemas são específicas de cada um” (Moura, 2014, pp.45-46). No entanto, posteriormente, Moura abdicou da ideia de leis econômicas específicas da escravidão colonial, sem abdicar da validade do conceito de modo de produção escravista para delimitar geograficamente e historicamente o tipo de escravidão instaurada na colonização das Américas (Moura, 2013).

Uma vez produzida pela expansão comercial europeia, a colônia se torna também reprodutora –mesmo que subordinada– do próprio sistema mercantil que passa a depender cada vez mais do tráfico de escravizados e da escravidão. Assim, o modo de produção escravista foi produto e, também, uma engrenagem reprodutora do sistema de acumulação de capitais na formação do capitalismo. O processo colonial e escravista foi fundamental na gestação do modo de produção capitalista na Europa. Nisso reside o sentido da colonização.

Escravismo Pleno e Escravismo Tardio

Outro elemento que se destaca na obra de Moura é a periodização da escravidão no Brasil desenvolvida em Sociologia do Negro Brasileiro (1988) e Dialética Radical do Brasil Negro (1994), na qual o autor definiu duas fases distintas da escravidão no Brasil. Tal periodização considera não apenas a temporalidade, mas também aspectos demográficos, socias, econômicos, políticos e culturais: trata-se do (1) Escravismo Pleno (1550-1850), fase ascendente, de estruturação da escravidão em sua plenitude; e do (2) Escravismo Tardio (1850-1888), fase descendente, de desagregação paulatina. A proibição do tráfico de escravizados com a Lei Eusébio de Queiros em 1850 é o marco que divide estas duas fases (Rocha, 2021).

O escravismo pleno (1550-1850) é caracterizado por: 1) monopólio comercial metropolitano; 2) produção de artigos primários para exportação; 3) tráfico de africanos escravizados em caráter triangular com acumulação de capital na metrópole; 4) economia colonial subordinada à metrópole e impossibilidade de acumulação interna; 5) latifúndio e escravismo como formas fundamentais de propriedade e produção; 6) legislação extremamente repressora contra os escravizados; 7) a luta dos escravizados sem apoio da população livre (Moura, 2014, pp.82-83).

O escravismo tardio corresponde ao estágio de decomposição do modo de produção escravista, de instauração de relações capitalistas no Brasil, e é caracterizado por: 1) diversificação regional do escravismo com a economia dinamizada sobretudo em São Paulo e Rio de Janeiro; 2) crescimento paulatino de parcelas de trabalhadores livres, e manutenção do trabalho escravo; 3) concomitância de relações capitalistas (ainda incipientes) e relações escravistas (em decadência); 4) subordinação ao capital estrangeiro (sobretudo o inglês) no nível de produção industrial, dinamização da comunicação e dos transportes, estradas de ferro, portos, iluminação à gás, telefone; 5) casas comerciais estrangeiras no setor bancário e de exportação; 6) urbanização; 7) tráfico de escravizados interprovincial com aumento do preço; 8) empresas de imigração e colonização (desequilíbrio na oferta de força de trabalho); 9) no fim do século, a luta dos escravizados ganha apoio de outros segmentos sociais (Moura, 2014, pp.123-124).

Capitalismo dependente, racismo e luta de classes no pós-abolição

Se a escravidão foi tema ao qual Moura se dedicou até o fim da vida, também é verdade que o autor produziu significativamente sobre o pós-abolição, como vemos em O negro: de bom escravo a mau cidadão? (1977), Brasil: as raízes do protesto negro (1982), Sociologia do Negro Brasileiro (1988) e Dialética Radical do Brasil Negro (1994). Moura caracterizou o Brasil pós-abolição como uma sociedade de capitalismo dependente na qual o racismo se manteve como uma ideologia de dominação de classes, associada às formas de controle social e exploração do “trabalho livre”.

A dependência em relação aos centros (Europa Ocidental e EUA) foi historicamente condicionada pelo processo no qual o Brasil se inseriu na “ordem concorrencial internacional” desde a abertura dos portos em 1808. Àquela altura os quase 300 anos de escravidão e pacto colonial inviabilizaram a acumulação primitiva de capitais na colônia. A manutenção da estrutura escravista e agroexportadora com a independência em 1822, somada à implementação de uma infraestrutura modernizante (ferrovias, portos, telégrafos, casas comerciais etc.) sob o capital estrangeiro durante a economia cafeeira, só reiterou e reforçou a condição de dependência ao longo do século XIX. Tal heteronomia, guardadas as peculiaridades de cada época, se estenderia por um processo de longa duração até os dias de hoje.

O racismo no pós-abolição seguiu como um dispositivo organizador das desigualdades sociais. Na passagem da economia escravista para o capitalismo, o negro foi alijado dos setores produtivos mais dinâmicos, e lançado majoritariamente aos setores mais precarizados e ao exército industrial de reserva. Tal fato se verifica entre o final do século XIX e os anos 1930, quando o Estado brasileiro investiu em políticas de imigração subvencionada, voltada principalmente para a vinda de europeus que foram empregados nas industriais, mas também em fazendas de café em São Paulo (que se tornara importante polo do capitalismo nacional.

Houve autores que tentaram explicar tal fato a partir de uma presumida “anomia social do negro” (herdada da escravidão) contraposta a uma “aptidão cultural do europeu para o trabalho livre” (Fernandes, 2021). No entanto, Moura refutou esta tese, e defendeu que opção pelo imigrante europeu atendia a duas demandas das classes dominantes: 1) o almejado branqueamento da população (ventilado por ideais eugenistas); 2) a garantia de uma superpopulação relativa que pressionaria para baixo o valor da força de trabalho, conferindo maior poder de barganha patronal. Assim, a marginalização social do negro não resultou de uma presumida “deformação de personalidade” herdada da escravidão contraposta a uma suposta “superioridade cultural do europeu”. Tal problema se deve a uma política de substituição étnica da força de trabalho que atendia aos interesses eugenistas e econômicos das classes dominantes acopladas ao Estado.

O problema do racismo associa-se à questão de classe na medida em que, historicamente, a exploração da força de trabalho segue racializada em uma sociedade formada majoritariamente por pretos e pardos (atingidos duplamente pela opressão racial e socioeconômica). O escravizado do passado é o ancestral da classe trabalhadora brasileira. Diante disso, Moura também estudou e colaborou com a luta das organizações negras contra o racismo, entendendo que se trata de um problema fundamental a ser enfrentado na luta pela superação do capitalismo.

Referências:

Cardoso, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003

Farias, Márcio. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019

Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Contracorrente, 2021

Freyre, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 52ª ed. São Paulo: Global Editora, 2013

Gorender, Jacob. O escravismo colonial. 6ª ed. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo, 2016.

Malatian, Teresa. Clóvis Moura: uma biografia. Teresina: EDUESPI, 2022

Mesquita, Érika. Clóvis Moura: uma visão crítica da história social brasileira. Dissertação de mestrado. São Paulo: Unicamp, 2002

Moura, Clóvis. Brasil: as raízes do protesto negro. São Paulo: Editora Dandara, 2023

Moura, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. 2ª ed. São Paulo: Anita Garibald/Fundação Maurício Grabois, 2014

Moura, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2013

Moura, Clóvis. História do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Dandara, 2023a

Moura, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. 5ª ed. São Paulo: Anita Garibald/Fundação Maurício Grabois, 2014a

Moura, Clóvis. A Sociologia Posta em Questão. São Paulo: Ciências Humanas, 1978

Moura, Clóvis. O negro: de bom escravo a mau cidadão? 2ª ed., São Paulo: Dandara, 2021

Moura, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019

Oliveira, Fábio Nogueira. Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra. Dissertação de mestrado, Niterói: UFF, 2009

Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 5ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1957

Rocha, Gabriel dos Santos. "Clóvis Moura: sociabilidade e formação intelectual (1940-1950)". Revista Sem Aspas, Araraquara, v. 10, n. 00.

Sodré, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. 10ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.