Ianni, Octavio
Octavio Ianni é brasileiro descendente de imigrantes italianos. Nasceu em outubro de 1926, em Itu, no interior do estado de São Paulo, e morreu em abril de 2004 na capital do mesmo estado. Sua produção teórica foi intensa ao longo da vida e ficou marcada pela adesão não-dogmática à tradição marxista. Apesar de se manter afastado de uma militância partidária orgânica, seu contundente posicionamento político na defesa do projeto socialista nunca arrefeceu.
Formado em Ciências Sociais em 1954 pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), Ianni logo se destacou nos estudos acadêmicos e ingressou na equipe de assistentes do catedrático Florestan Fernandes. Dois anos após a formatura, defendeu o mestrado em Sociologia com a dissertação Raça e mobilidade social em Florianópolis e, em 1961, conquistou o título de doutor após a aprovação da tese O negro na sociedade de castas.
O início da sua carreira docente foi influenciado pela Escola de Sociologia da USP, então coordenada pelo professor titular Florestan Fernandes e compartilhada por sociólogos eminentes como Antonio Candido e jovens promessas, como Fernando Henrique Cardoso (FHC), Maria Sylvia de Carvalho Franco e Marialice Mencarini Foracchi. Nos anos 1950-60, a referida Escola consolidou o ensino de clássicos internacionais das ciências sociais –Marx, Weber, Durkheim, Simmel, Sombart, Parsons, Mannheim, etc.– e avançou nas pesquisas sobre a realidade brasileira, com destaque para a questão racial, as classes dominantes e o processo de desenvolvimento capitalista.
A sólida formação teórica forjada na USP foi largamente valorizada por Ianni, mas taxada pontualmente por ele de “visão naturalista”, que desenvolvia “uma aguda compreensão da anatomia do fato social e perdia-se a fina compreensão do espírito”. Na verdade, ele seguiu uma outra trajetória: distanciou-se de uma pretensa vocação cientificista das Ciências Sociais e notabilizou-se por análises concretas de situação concreta sobre a realidade brasileira. Foi justamente o que Lenin considerava como a “alma viva do marxismo” que o sociólogo paulista incorporou tão bem nos seus livros, artigos, aulas e palestras.
Nessa etapa inicial de sua formação, frequentou, ainda jovem, o famoso e superestimado Seminários Marx, composto por docentes e estudantes da USP e tido como uma experiência pioneira de introdução dos textos marxianos na academia brasileira. Desvinculado de uma intervenção política mais orgânica na vida pública, o grupo acadêmico subsidiou pesquisas que, posteriormente, teriam impacto além da cidadela universitária e impulsionariam a formação política de futuros quadros da esquerda revolucionária.
As produções da Escola paulista de Sociologia são reconhecidas pela sua excelência e se tornaram patrimônio do pensamento social crítico brasileiro. No tocante à questão racial, a sociologia uspiana, a partir das pesquisas de Roger Bastide e Florestan Fernandes, questionou abertamente a abordagem de Gilberto Freyre e o mito da democracia racial, fortalecendo a luta antirracista no país em aliança com o movimento negro. Além disso, desvelou aspectos da escravidão no Sul do Brasil, uma região pouco estudada nos anos 1960 devido ao número relativamente baixo da população negra nos seus estados (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul).
Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, sob orientação de Florestan Fernandes, foram precursores nesses estudos regionais sobre a escravidão. A despeito da sua importância seminal, tais produções sofreram objeções quanto a formulações de coisificação dos sujeitos escravizados e anulação das suas resistências conscientes nas lutas de classes. Clóvis Moura e Jacob Gorender, por exemplo, foram críticos mordazes de tais escritos, conquanto reconheciam seus pontos fortes e as implicações políticas avançadas no seu tempo.
No bojo da sociologia uspiana, as produções de Ianni ganharam destaques. Seus escritos sobre Estado e desenvolvimento capitalista foram decisivos na crítica às teses que insistiam na existência de uma suposta burguesia nacionalista no Brasil, capaz de romper com o imperialismo e as relações pré-capitalistas no campo (alguns falavam em feudalismo, outros em semi-feudalismo). Tais críticas tinham fortes implicações políticas, pois transcendiam as objeções às formulações estruturalistas e cepalinas; elas também questionavam o etapismo e o caráter conciliatório de classes de estratégias reformistas presentes em organizações partidárias defensoras da revolução brasileira.
Além disso, Ianni sustentava, nos seus textos dos anos 1960 e 1970, que o Estado nacional tinha um papel ativo na industrialização do país, mas sem aderir às teses de um Estado-demiurgo que comandaria o desenvolvimento do capitalismo dependente. O Estado não tinha vida própria, autonomizada de forma absoluta dos projetos classistas das burguesias locais. Estas tinham responsabilidades nas suas escolhas, que aprofundavam a dependência e o subdesenvolvimento no país, e não eram meras marionetes controladas pelas burguesias internacionais. Vale destacar que, ao longo da sua produção, temas como Estado, desenvolvimento e dependência foram abordados por uma perspectiva de totalidade, que fugia de esquemas economicistas e privilegiava a interação entre as múltiplas esferas do ser social, integrando economia, política e cultura.
A partir de abril de 1964, com a ditadura empresarial-militar instaurada no Brasil, o projeto de criação de uma sociologia crítica na USP sofreu reveses. Em dezembro de 1968, com o Ato Institucional n.5 (AI-5), a repressão tornou-se ainda mais agressiva e prisões e exílios atingiram em cheio o corpo docente uspiano. Em 1969, Ianni teve seus direitos cassados e foi compulsoriamente aposentado. No ano seguinte, foi preso na operação Tarrafa.
Nesse período inicial do golpe, o sociólogo paulista passou temporadas lecionando em países americanos e europeus –Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Itália e México– e criou obras de alcance internacional, em especial na língua espanhola. Algumas dessas foram, inclusive, publicadas pela prestigiada editora Siglo XXI. A América Latina ganhou maior peso na sua obra, tendo ele se debruçado em temas como populismo, desenvolvimentismo e ditaduras para além do Brasil. Suas reflexões sobre o cardenismo, por exemplo, foram amplamente difundidas e marcaram época na teoria crítica mexicana.
Os golpes proferidos pela ditadura contra a USP demarcaram o fim do ciclo mais progressista da Escola Paulista de Sociologia. Vínculos foram desfeitos, pesquisas descontinuadas e sonhos estilhaçados. Mas algo não se perdeu: a afinidade intelectual entre Florestan e Ianni. A influência de Florestan sobre o seu pensamento é pública e notória e foi vindoura, mas não nos deixemos enganar: Ianni foi muito além de um discípulo dileto e bem-sucedido do seu mestre. Ele se tornou um sociólogo de alto gabarito, com estilo próprio e autonomia intelectual.
A coerção ditatorial não esmoreceu os seus posicionamentos críticos. De volta ao país, vinculou-se anos a fio ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, fundado por professores e professoras da USP aposentados(as) pelo AI-5. Nessa instituição de pesquisa, Ianni aprofundou seus estudos sobre a questão racial, o Estado e o imperialismo e ampliou o raio de alcance para temas como a questão agrária, a Amazônia, a questão indígena, a guerrilha no Araguaia e o sindicalismo operário. Sua produção se manteve permanentemente antenada com a conjuntura e as lutas da classe trabalhadora ganharam, assim, destaque no final dos anos de 1970 nos seus manuscritos, tendo como uma das suas marcas o prenúncio da decadência da ditadura.
Apesar de compor os quadros do Cebrap por mais de dez anos, Ianni era tido como um peixe fora d´água na instituição. A sua produção intelectual mantinha confortável distância dos antigos colegas da USP, em especial a de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e suas teses sobre dependência e autoritarismo. Enquanto FHC operava uma inflexão teórica e política na sua trajetória, distanciando-se do marxismo, Ianni fez uso do arsenal desta tradição para enriquecer as suas análises concretas de situação concreta sobre o Brasil, sempre a renovando com novas perspectivas e objetos de pesquisa.
As suas investigações sobre a ditadura na virada da década, se comparadas aos escritos dos anos 1960, ganharam densidade e ajudaram a desvelar o entrelaçamento oculto das questões econômicas, políticas, sociais e militares. Ianni foi além das justas e necessárias denúncias sobre o terrorismo de Estado e suas bárbaras violações dos direitos humanos. Segundo o sociólogo, a brutal coerção direcionada ao mundo do trabalho estava diretamente relacionada à restauração das taxas de lucro embolsadas pelas burguesias monopolistas nacional e internacional e latifundiários. O uso da força, analisado a partir da categoria marxiana da violência como potência econômica, estabeleceu o que Ianni chamou de ditadura do grande capital. A violência organizada e concentrada do Estado era, portanto, relacionada à instauração de uma nova etapa do capitalismo dependente no Brasil, à hegemonia do grande capital internacional no bloco de poder dominante e às políticas econômicas do desenvolvimentismo militarizado.
Em 1977, por convite de Nadir Kfouri, reitora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ianni retomou suas atividades universitárias, junto com seu amigo e companheiro Florestan Fernandes. A presença dos eminentes sociólogos fortaleceu ainda mais a aura da PUC-SP como um bastião de resistência à ditadura. Enquanto isso, os portões da USP se mantinham cerrados por conta de posicionamentos mais conservadores e Ianni não pôde regressar ao seu marco zero, apesar de toda a sua vivência marcante na instituição e o seu prestígio nacional e internacional. Em 1986, ele retornou ao setor público como funcionário efetivo do quadro funcional da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), instituição a qual ficou vinculado até o final da vida.
Nos anos pós-ditadura, sua produção continuou ativa e experimentou ares renovados. Embora já fossem frequentes no seu catálogo editorial, textos sobre cultura ganharam mais espaço na sua obra, bem como surgiram ensaios marcantes sobre teoria marxista e sociologia, história do pensamento social brasileiro e a revolução burguesa no Brasil. Mesmo apostando no futuro do país, Ianni foi um crítico contumaz da chamada “transição democrática”, denunciando a hegemonia burguesia na condução de tal processo de transição, que viria desaguar no neoliberalismo na década seguinte.
Nos anos 1990 e início do século XXI, na última fase da sua produtiva carreira, os seus escritos sobre globalização foram envoltos em polêmica acalorada. Os livros dessa fase tiveram enorme sucesso de público, ganharam sucessivas edições no mercado nacional e na América Latina. Dois deles foram agraciados com prêmios Jabuti, uma das mais prestigiadas honrarias editoriais no seu país natal. Todavia, comentadores da sua obra alegaram que esses livros se distanciaram demasiadamente das teorias marxistas do imperialismo e até mesmo negariam alguns dos seus fundamentos. Em resposta aos seus críticos, Ianni disse que, diante da fase inédita do capitalismo, as pesquisas não deveriam se refugiar em posições confortáveis e ortodoxas.
Polêmicas à parte, essa última etapa da sua obra sustentou fortes críticas ao neoliberalismo, às intervenções das potências capitalistas centrais nos países dependentes e ao aumento das desigualdades sociais no mundo. Nesse mesmo período, Ianni nutriu querelas públicas com o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, denunciando o caráter conservador da aliança política do Partido Social-Democrata Brasileiro (PSDB) com grupamentos herdeiros da ditadura (o então Partido da Frente Liberal), o caráter privatista e a adesão do governo tucano aos ditames do Consenso de Washington. Um dos ápices desses embates ocorreu em 1999, quando Ianni impediu a republicação de um dos seus livros escrito em parceria com seu ex-colega da USP no início da carreira de ambos.
Em vida, Octavio Ianni recebeu distinções dignas de nota: tornou-se professor emérito na USP e Unicamp, honoris causa das Universidades de Buenos Aires (UBA) e Federal do Paraná (UFPR) e ganhou prêmios literários, como o Jabuti em duas ocasiões e o Juca Pato como intelectual do ano em 2000. O seu acervo pessoal, composto de mais de 9.000 itens, foi doado antes do seu falecimento para a Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp)/campus de Araraquara e está disponível à visitação pública em sala especial. Em 2003, a Sociedade Brasileira de Sociologia, da qual foi 1º secretário entre 1960 e 1962, concedeu-lhe o prêmio Florestan Fernandes.
Após a sua morte, as homenagens continuaram. A biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp foi rebatizada com o seu nome, expressão da importância da sua passagem por lá. Em 2008, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), na Faculdade de Serviço Social, foi fundado o Centro de Estudos Octavio Ianni (Ceoi). Na grande rede, o blog marxismo21 preparou um extenso dossiê de livre acesso sobre a sua obra, com textos originais e diversas comentadoras e comentadores na forma de artigos, dissertações de mestrado e teses de doutorado. E a sua obra ainda foi discutida em coletâneas como Humanismo e compromisso, organizada por Maria Izabel Leme Faleiros e Regina Aída Crespo (Editora Unesp, 1996) e Pensamento de Octavio Ianni, organizada por Marilda Iamamoto e Elaine Behring (7Letras, 2009) a partir do Ceoi/Uerj, demonstrando a vitalidade e atualidade do seu pensamento crítico, engajado e transformador.
Obras destacadas:
As metaformoses do escravo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962.
Estado e capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
Imperialismo y cultura de la violencia en América Latina. México D.F.: Siglo XXI, 1970.
Estado e planejamento econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
Imperialismo na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
El colapso del populismo en Brasil. México D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, 1974.
Estado y planificación económica en Brasil (1930-1970). Madrid: Amorrortu, 1975.
Esclavitud y capitalismo. México D.F.: Siglo XXI, 1976.
El Estado capitalista en la época de Cárdenas. México D.F.: Era, 1977.
Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978.
A luta pela terra: história social da terra e da luta pela terra numa área da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979.
O ABC da classe operária. São Paulo: Hucitec, 1980.
A ditadura do grande capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
Dialética e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1982.
Revolução e cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
Sociologia da sociologia. São Paulo: Ática, 1989.
A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 1992.
Teorias de la globalización. México D.F.: Siglo XXI, 1996.
La sociedad global. México D.F.: Siglo XXI, 1997.
La era del globalismo. México D.F.: Siglo XXI, 1999.
Enigmas de la modernidad-mundo. México D.F.: Siglo XXI, 2000.
La sociología y el mundo moderno. México D.F.: Siglo XXI, 2005.