Prado Júnior, Caio
Desde a juventude, Caio Prado Júnior –considerado um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX– se esforçou por compreender e interpretar de forma sofisticada o processo histórico de seu país. Através da leitura de autores heterogêneos, de seu diálogo com intelectuais de esquerda contemporâneos e de debates dentro de seu partido, ele iria apontar os caminhos para a intervenção política, a partir de temas como reforma, revolução, socialismo e questão agrária.
Ao longo da vida, exerceu diversas atividades: militou no Socorro Vermelho Internacional; foi membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB); em 1935, atuou como presidente regional da Aliança Nacional Libertadora (ANL), em São Paulo; foi deputado estadual constituinte em 1947, tendo seu mandato cassado no ano seguinte; se exilou na França no final da década de 1930 e no Chile em 1969; e foi perseguido pela ditadura militar, que o indiciou e o deteve em algumas ocasiões, por considerá-lo “a serviço dos interesses revolucionários do comunismo internacional” (Bartoletti, c. 1965). Afinal, segundo os órgãos de segurança, ele publicava livros “subversivos” com textos e discursos de Fidel Castro! (OESP, 1965, p. 15; Castro, 1962; Castro, 1963a; Castro, 1963b). Caio Prado Júnior foi preso em diferentes ocasiões (a última em 1970, aos 63 anos de idade, quando praticamente não tinha mais militância política efetiva; neste caso, o principal motivo foi uma entrevista concedida a uma revista estudantil; ele foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão, mas teve a pena reduzida e foi solto em agosto de 1971). Também integrou organizações políticas e culturais em apoio à URSS, à China e a Cuba; ajudou a constituir a Associação dos Geógrafos Brasileiros em 1934 (da qual tornou-se secretário); fundou uma das mais importantes editoras nacionais, a Brasiliense (1943) e a Gráfica Urupês (1954); editou a Revista Brasiliense entre 1955 e 1964 (talvez a mais emblemática publicação teórica do período); e escreveu clássicos como Formação do Brasil contemporâneo (1942), História econômica do Brasil (1945) e A revolução brasileira (1966), com o qual ganhou da União Brasileira de Escritores (UBE), no início de 1967, o troféu Juca Pato de “intelectual do ano” de 1966.
Ainda que tenha se destacado como historiador, Caio Prado Júnior também se embrenhou em temas filosóficos e econômicos. Publicou Dialética do conhecimento (em dois volumes), em 1952 (com o qual ganhou o Prêmio Horácio Lafer, do Instituto Brasileiro de Filosofia), Notas introdutórias à lógica dialética, em 1959 e O estruturalismo de Lévi-Strauss/o marxismo de Louis Althusser, em 1971. Escreveu a tese Diretrizes para uma política econômica brasileira, em 1954, com a qual concorreu à cadeira de Economia Política da Faculdade de Direito da USP em 1956 (a pedido de seu partido; ele não venceu, mas ganhou o título de “livre docente”), Esboço dos fundamentos da teoria econômica em 1957 e História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro, tese apresentada em 1968 – após ser estimulado pelo amigo Sérgio Buarque de Holanda – ao concurso para professor na área de História da Civilização Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, o qual foi cancelado por motivos políticos (a obra seria publicada em forma de livro em 1972 pela Brasiliense). Apesar de ser consistentemente fiel ao PCB, sempre manteve um pensamento bastante independente e original. Caio faleceu em 1990, aos 83 anos de idade, após anos lutando contra o Mal de Alzheimer.
Foi incompreendido e criticado por diferentes grupos ao longo das décadas. Nascido em São Paulo, em 11 de fevereiro de 1907, Caio da Silva Prado Júnior era filho de uma das mais ricas e tradicionais famílias brasileiras. Estudou no Colégio São Luís, passando uma breve temporada em Eastbourne (Inglaterra). Em 1924, ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, tornando-se bacharel em ciências jurídicas e sociais em 1928. Apesar da confortável situação econômica, contudo, é bom recordar que seu ingresso no PCB, efetivado em 1932 (depois de militar entre 1928 e 1931 no Partido Democrático), não seria fácil em termos pessoais, e ele teria de arcar com todas as consequências dessa verdadeira ruptura ideológica com sua classe (Pericás, 2023, p. 11; Carone, 1991, p. 214). Nos almoços e reuniões de família na casa de sua mãe, muitos parentes se recusavam a comparecer ou deixavam de ir à mansão se soubessem que ele estaria presente, isolando-o socialmente. Até mesmo cruzes em chamas eram jogadas nos jardins de sua casa. Houve momentos em que sua filha Danda (ainda criança) recebeu pedradas na rua, em Higienópolis, e mais tarde, durante a adolescência, foi agredida verbalmente no Clube Harmonia, acusada de ser “filha de comunista”. A militância, as ideias (radicais demais para a elite paulista) e as prisões o tornavam uma figura indesejável, um pária nos círculos privados dos quais outrora fizera parte.
Dentro de seu partido, também passou por dificuldades. Ainda que um militante disciplinado (nunca criou cisões ou tendências internas), ele rebateu várias posturas e interpretações pecebistas. No final de 1932, por exemplo, foi ameaçado de expulsão, acusado pelo Comitê Regional de São Paulo de ser trotskista (o que não era verdade) e de estar se aliando a grupos desta tendência para dar um “golpe de Estado” dentro da agremiação. Teve de se defender desta e de outras acusações ao longo da vida. Neste caso específico, ele permaneceria no PCB, no qual tinha bons contatos no Comitê Central. A ajuda material que aportava (era um dos mais atuantes financiadores da organização) provavelmente pesou nesta situação (ele nunca abandonaria o partido).
Ao longo dos anos, seria apontado por alguns como “burguês” ou “aristocrata” (em virtude de sua origem de classe) e por outros como “revisionista”, “reformista” e “nacional reformista”. Mesmo pela própria família foi por vezes incompreendido e rotulado de “radical” e “rebelde”. Já comunistas mais ortodoxos chegaram a dizer que ele não seria “marxista”, mas, na prática, um eclético.
Na União Soviética, onde era conhecido e lido, por vezes, também foi atacado. O jornalista Yuri Alexandrovich Kalugin, tradutor de Jorge Amado e importante membro da União dos Escritores de seu país, faria uma crítica interna ao intelectual paulista ao comentar um texto de Vera Kuteischkova sobre o romancista baiano, no qual ela utilizara como uma de suas fontes, História econômica do Brasil (que foi publicado na URSS com o título Ekonomitschskaia istoria brazilii, em 1949). Kalugin elogiaria a colega, mas diria que o artigo necessitava correções. A principal: retirar a menção a Caio Prado Júnior, já que ele se revelara “um renegado trotskista”! Ainda assim, em 1952, paradoxalmente, o historiador paulista diria que Stálin era “o maior continuador da obra ideológica de Lênin, e não apenas seu sucessor na direção política do Estado soviético” (Prado Júnior, 1960, p. 540). Para CPJ, com Lênin e Stálin, a dialética teria atingido “o pleno florescimento de nossos dias”. Mais tarde, Caio Prado Júnior (1973, p. 41-78) expressaria várias restrições à “filosofia” soviética oficial e às posições de acadêmicos como P. V. Tavants, M. M. Rosental, Pavel Yudin e G. M. Straks, ainda que aderisse aos novos rumos das eras kruscheviana e brezhneviana, assim como apoiasse a política de “coexistência pacífica” da URSS daquele período.
Caio, portanto, foi sempre um admirador e defensor da União Soviética, chegando a escrever dois livros sobre aquele país, URSS, um novo mundo (1934) e O mundo do socialismo (1962), só discordando de Moscou em 1968, por causa da invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia. Na ocasião, enviaria um telegrama indignado ao embaixador russo no Brasil, Sergei Mikhailov, demonstrando sua repulsa ao ocorrido. Apesar disso, continuaria a ser interessar pelos assuntos ligados àquela nação, a ler constantemente publicações soviéticas e a manter sua opinião favorável sobre seu modelo de socialismo.
Caio Prado Júnior seria capaz de sacrificar sua vida pessoal em nome de ideais: expôs a si mesmo e a sua família à execração pública, foi constantemente vigiado pelos órgãos de segurança ao longo dos anos, teve de afastar-se daqueles que amava nas diferentes ocasiões em que foi detido e encarcerado, viu-se obrigado a se autoexilar durante o governo Vargas e a ditadura militar e, ainda assim, recebeu críticas dos mais diferentes setores partidários, tanto da esquerda quanto da direita (as críticas do campo progressista – muitas das quais, feitas por membros de sua própria agremiação política –, seriam elaboradas por intelectuais como Nelson Werneck Sodré, Carlos Nelson Coutinho, Ruy Mauro Marini, Marco Antônio Tavares Coelho e Paulo Cavalcanti, entre outros). Embora tivesse uma condição econômica confortável e sua liberdade de ir e vir em geral (mas nem sempre) fosse respeitada, o fato é que ele, sem dúvida, escolheu o caminho mais duro, o de um militante pecebista (tanto no trabalho direto dentro do partido como também no de intelectual marxista “independente”), sem nunca abandonar a luta.
Em termos intelectuais, ele estudava com profundidade o processo histórico nacional, a partir do método dialético, como forma de entender e intervir no presente. Não apenas se limitava a análises conjunturais, mas via o país no quadro maior da longa duração. Sua prioridade, portanto, foi sempre a luta pela transformação social.
Caio discutirá o desenvolvimento desigual e combinado de um país que irá, desde seus primórdios, se inserir na lógica do mercado internacional e, depois, do imperialismo: neste sentido, os desígnios externos vinculados a elementos de poder político-econômico endógenos permitirão a subsistência de uma dinâmica que se reproduz historicamente (com recorrentes mudanças, rupturas e expansões), mas deixando inalterados, em boa medida, traços básicos das relações sociais (como a subordinação de setores subalternos, pouco preparados cultural e ideologicamente, e muitas vezes sem organicidade política ou condição efetiva de contrapor o modelo consolidado). Por isso, a necessidade de se atuar na fratura sócio-histórica e cultural brasileira, tentando integrar as classes menos privilegiadas ao painel ampliado da construção da “nação”. Definidores do caráter do conjunto colonial, por sua vez, seriam a grande propriedade agrícola voltada para a monocultura de exportação e a utilização de mão de obra escrava.
Em Evolução política do Brasil (seu livro de estreia, publicado em 1933), “considerada senão cronologicamente ao menos qualitativamente, a primeira obra historiográfica a analisar a sociedade brasileira do ponto de vista do materialismo histórico, ou da interpretação materialista” (Silva, 1996, p. 67), Caio Prado Júnior irá discutir a relação entre “continuidade” e “descontinuidade” ao longo de nossa história, em um estudo que procurava, a partir especialmente da análise da correlação de práticas econômicas entre as diferentes áreas do território brasileiro, apresentar a independência do Brasil como uma “revolução”, ainda que incompleta, mostrando que as divergências de interesses entre a metrópole e a colônia se agudizariam no século XVIII (com a descoberta do ouro) e levariam a um acirramento do controle lusitano, com a autonomia das elites locais no Brasil tendo sido restringida por posturas autoritárias impostas por Portugal, que tolhia a ação dos habitantes locais. Se de um lado, os proprietários territoriais propugnavam um afastamento do jugo metropolitano, de outro defendiam a manutenção do sistema escravista e seu domínio econômico interno. É significativo que o livro tenha recebido o subtítulo “Ensaio de interpretação materialista da história do Brasil”. Com ele, o jovem intelectual produzirá um verdadeiro marco nos estudos marxistas brasileiros: ele dá centralidade às massas populares e à importância de sua integração à realidade do país, assim como ao próprio decurso histórico, inserindo os estratos sociais menos privilegiados no processo de construção nacional, da Colônia ao fim do Império, como agentes ativos, que se expressam por meio de lutas populares, fossem reivindicatórias, fossem pela tomada efetiva do poder. Ele apresenta o “povo” como um elemento constantemente “excluído” do processo, mas ao mesmo tempo ressalta seu papel protagonista nos momentos de revoltas, como a “Cabanada” (Cabanagem), no Pará, a Balaiada, no Maranhão, e a Revolução Praieira, em Pernambuco. O fracasso desses intentos só reforçava a necessidade de construção de alicerces políticos e culturais sólidos, sem os quais aqueles que vinham de baixo não conseguiriam tomar e manter o poder. Subjacente, há a mensagem de preparo intelectual e ideológico. E, também, de capacidade de organização. Afinal, os escravos, com um papel político insignificante, e as camadas baixas e médias constituindo-se essencialmente num aglomerado de indivíduos, sem projeto definido nem coesão, teriam dificuldade em imprimir sua marca no destino do Brasil. A “unidade” na ação direta e a habilidade de construir alianças, nesse sentido, seriam fundamentais, ambos os elementos que teriam faltado em diferentes casos de nossa história. A atuação e a resistência dos “rebeldes”, portanto, tinham limitações claras e eram insuficientes no painel de mudanças estruturais, acabando por fracassar. Poderiam ser considerados, para todos os efeitos, movimentos desconexos e mal orientados (Pericás, 2016, p. 53).
As contradições entre brasileiros e portugueses iriam se intensificar e desembocariam, em última instância, na emancipação política, analisada dentro de um interregno alongado de 1808 até o começo da década de 1830, enquanto, concomitantemente, se elaborava uma identidade política a partir do prisma das elites, o qual não negava a ordem, mas na prática, a reforçava (Blaj, 1996, p. 82; Pericás, 2022, p. 88-89); uma situação singular, em que “a independência é promovida pelos grupos que já detinham o poder, que já ocupavam postos no Estado, daí, inclusive o seu caráter conservador” (Blaj, 1996, p. 82; Pericás, 2022, p. 88-89), com a exclusão das massas populares na consolidação do Império, o que exemplificaria um caso de “descontinuidade” no plano político e de “continuidade” no que concerne os alicerces econômicos, sociais e institucionais herdados do período colonial (como a permanência da escravidão como um elemento unificador dentro do território brasileiro) (Pericás, 2016, p. 54). Já o Estado não teria surgido de forma horizontal, a partir das demandas e aspirações dos setores subalternos, mas reproduziu, em grande medida, a monarquia portuguesa instalada aqui, constituindo uma experiência que “não comportava naturalmente uma estrutura política democrática e popular” (Prado Júnior, apud Silva, 1996, p. 67). As forças produtivas coloniais e a infraestrutura econômica haviam chegado a um “estágio avançado” ao qual não correspondia mais a superestrutura do Brasil colônia, o que leva ao esgotamento do modelo que “num primeiro momento supriu as necessidades e os interesses das classes dominantes coloniais” (Silva, 1996, p. 70), mas que “exatamente pela dinâmica do próprio sistema que propiciou uma evolução econômica, causa do rompimento entre os grupos que outrora se entendiam perfeitamente” (Silva, 1996, p. 70). A saída seria uma independência que pudesse conter os setores populares e prevenir, ao mesmo tempo, um embate direto e violento com Lisboa naquele momento, resguardando os interesses do Brasil e da antiga metrópole (Silva, 1996, p. 70). O historiador paulista diria que “outro efeito da forma pela qual se operou a emancipação do Brasil é o caráter de ‘arranjo político’, se assim nos podemos exprimir, de que se revestiu. [...] Resulta daí que a Independência se fez por uma simples transferência pacífica de poderes da metrópole para o novo governo brasileiro. E na falta de movimentos populares, na falta de participação direta das massas neste processo, o poder é todo absorvido pelas classes superiores da ex-colônia, naturalmente as únicas em contato direto com o Regente e sua política. Fez-se a Independência praticamente à revelia do povo; e se isto lhe poupou sacrifícios, também afastou por completo sua participação na nova ordem política. A Independência brasileira é fruto mais de uma classe que da nação tomada em conjunto” (Prado Júnior, 1966, p. 45).
Num longo processo histórico, iniciado a partir da independência política, o país transitou para um novo momento após a eliminação do tráfico de escravos africanos (1850) e mais tarde, com estímulo à imigração europeia (que seria responsável por trazer junto consigo, qualidade técnica laboral, assim como elevação da produtividade e da cultura dos trabalhadores) e a abolição formal da escravidão em 1888, o que, em teoria, começaria a integração da massa trabalhadora endógena à “sociedade” brasileira. O período republicano veio em seguida e com ele, a construção tanto de um “Estado” como de um “arcabouço jurídico”, encabeçada pela burguesia. Estas seriam as características de nossa “evolução histórica” e das “etapas decisivas” da revolução brasileira (Prado Júnior, 2004, p. 82-83).
Caio Prado Júnior fará uma crítica contundente à concentração de terras e à “livre iniciativa privada”, defendendo, ao mesmo tempo, o aprofundamento de reformas democratizantes e a rejeição a todo tipo de autoritarismo (ele escreveu vários textos sobre a questão agrária para a Revista Brasiliense, que anos mais tarde seriam publicados na coletânea A questão agrária no Brasil, lançada em 1979). As origens históricas das relações agrárias no país, portanto, poderiam ser relacionadas a resquícios “escravistas” e “semiescravistas”, e não “feudais” ou “semifeudais”.
Seu A revolução brasileira, de 1966, será um marco. A obra causou grande impacto nas esquerdas do país. Foi, de acordo com Jacob Gorender (1987, p. 73), um dos livros que “fizeram a cabeça” dos militantes da época (na Argentina, o livro seria publicado por A. Peña Lillo e traduzido e prefaciado por Rodolfo Puiggrós). Nele, era possível encontrar críticas duras à ideia de existência de uma “burguesia nacional anti-imperialista”, ao “reboquismo” pecebista nos governos JK e Jango, às teses sobre o “feudalismo” na história brasileira e às “sobrevivências feudais” no campo. Para ele, a agricultura no país era “capitalista”, e as relações de trabalho na área rural, de regime assalariado. Não havia nenhuma indicação sobre a possibilidade de luta armada no Brasil (ainda que a experiência cubana fosse mencionada favoravelmente). Para alguns críticos, Caio Prado Júnior estaria, nesse caso, propugnando uma estratégia defensiva e reformista na ação política dos trabalhadores (tendo como foco central objetivos imediatistas e concretos), uma vez que se preocupava essencialmente com a melhoria das condições laborais e de subsistência da massa popular. Para outros estudiosos, contudo, certas conclusões do livro o aproximariam de uma abordagem gramsciana (ainda que não intencional), que enfatizava uma natureza “processual” da revolução. Seus detratores também apontavam para a falta de uma discussão clara sobre a questão da tomada do poder político.
Além disso, ele questionava a ideia de uma burguesia nacional que pudesse ser um agente confiável no processo de modernização e desenvolvimento, já que ficara muito claro o papel submisso e apendicular dessa classe durante e após o golpe militar (apoiado tanto pelo imperialismo norte-americano como pelos próprios empresários autóctones). Para que a luta contra o imperialismo fosse efetiva, CPJ atacaria a interpretação de que haveria uma contraposição entre uma suposta burguesia progressista (defensora dos interesses nacionais) e outra “mercantil”, que se vinculava ao setor de agroexportação e era aliada dos imperialistas estrangeiros. Na verdade, a burguesia endógena e o imperialismo andavam juntos.
O Brasil seria constituído por um aglomerado humano heterogêneo e inorgânico, sem estruturação econômica adequada e onde “atividades produtivas de grande significação e expressão não se acham devidamente entrosadas com as necessidades próprias da massa da população” (Prado Júnior, 2004, p. 158). Isso se refletia em um baixo nível de vida da maioria da população e um mercado consumidor restrito. Essas deficiências, entre outras, precisavam ser superadas através de uma “verdadeira reorganização e reorientação da nossa economia” (Prado Júnior, 2004, p. 159). A direção das atividades econômicas pelo governo teria papel precípuo neste caso.
A revolução brasileira significaria a desconexão e rompimento com o capitalismo monopolista em sua periferia. Apesar de suas características próprias e específicas, ela se assemelha às revoluções de outros países dependentes em relação ao imperialismo (como aqueles africanos e asiáticos, por exemplo), sendo que a “nossa originalidade consiste na maneira e nas circunstâncias particulares em que essa subordinação se efetiva e pelas quais é condicionada” (Prado Júnior, 2004, p. 187; Pericás, 2019, p. 78). Afinal, as diferenças com outros povos eram, muitas vezes, consideráveis. Para ele:
A especificidade da revolução brasileira é dada em particular pelas circunstâncias internas, isto é, pelas relações que constituem e caracterizam a organização econômica e a estrutura social do país. A natureza dessas relações, contudo, vai marcar e definir a nossa posição no sistema internacional do capitalismo. E assim ambas essas ordens de circunstâncias, as internas e as externas, se conjugam e complementam de tal maneira que a eliminação de umas implica necessariamente a das outras. Não nos podemos libertar da subordinação com respeito ao sistema internacional do capitalismo, sem a eliminação paralela e simultânea daqueles elementos de nossa organização interna, econômica e social, que herdamos de nossa formação colonial. E a recíproca é igualmente verdadeira: a eliminação das formas coloniais remanescentes em nossa organização econômica e social é condicionada pela libertação das contingências em que nos coloca o sistema internacional do capitalismo no qual nos entrosamos como parte periférica e dependente (Prado Júnior, 2004, p. 187; Pericás, 2019, p. 78).
Se Caio Prado Júnior não encampava a guerra de guerrilhas no Brasil, durante o regime militar, isso não significa que não concordasse com o uso da força e da luta armada em determinados processos revolucionários, dependendo da situação concreta, como foram os casos da Rússia e de Cuba. E isso ele expressou em diferentes momentos.
No começo da década de 1930, ele afirmou, em relação à violência, que “ela é a lei das transformações sociais; nenhuma se operou sem o seu concurso. Uma sociedade de classes, fundada em conflitos permanentes, só pelo aguçamento destes conflitos, levados ao extremo da violência, é capaz de se transformar, de evoluir”. Para ele, naquela ocasião, “o socialismo só será realizado pelo partido que seguir as pegadas dos bolchevistas, isto é, pela insurreição armada, pela tomada violenta do poder, como se deu na Rússia, e não pela via pacífica da conquista da maioria parlamentar, como quer a social-democracia, os partidos socialistas de todo o mundo” (Prado Júnior, 1934, p. 24, 230).
Mesmo que não tivesse nada contra a violência per se, Caio Prado Júnior considerava que o processo revolucionário tinha condições de se desenvolver de formas distintas, de acordo com as especificidades de cada caso particular e da época em que ocorriam. Assim, as “reformas” poderiam fazer parte, a longo prazo, da construção do socialismo, e não necessariamente por meio de levantes. Para ele, contudo, tanto os movimentos grevistas como as lutas de libertação nacional eram elementos importantes no combate contra o capitalismo e o neocolonialismo. A luta social, consequentemente, sempre teve um papel fundamental no ideário caiopradiano: “Os pregadores da paz social pregam, pelo que se vê, no deserto” (Prado Júnior, 1962, p. 6). Para o historiador paulista, no Brasil, a revolução deveria partir do proletariado urbano, ainda que a massa principal do país, em seu ponto de vista, fosse a dos trabalhadores rurais. Em relação à via pacífica ou armada, CPJ diria:
Não sou profeta, nem sei qual a maneira prática de realizar a Revolução. A luta é em torno de reivindicações, em torno de certos objetivos concretos a que se propõe, se for possível conseguir esses objetivos através de meios pacíficos, a revolução será sem luta armada. Caso contrário, se a resistência se revelar grande, a luta armada será, evidentemente, a única solução. A existência ou não da luta armada, depende das circunstâncias do momento, da situação tal como ela se apresenta (Revisão, 1967, p. 21).
O historiador, em última instância, declarava que “não adianta programar a luta armada, se não existem os elementos capazes de concretizá-la. A forma de ação é determinada pelas circunstâncias e condições do momento” (Revisão, 1967, p. 21).
No Brasil, a conjuntura do campo seria modificada à medida que fosse aplicada a legislação trabalhista, algo que dependeria de “luta intensa”. As leis laborais, afinal, diminuiriam a concorrência da mão de obra barata, que se deslocava do campo para as cidades, desvalorizando assim a mão de obra urbana. Ainda que parte do proletariado rural reivindicasse a posse da terra, a luta por um pedaço de chão seria, em termos gerais, insignificante: aqui, a demanda era essencialmente por emprego. A esquerda brasileira, que naturalmente representava a vanguarda dos setores populares e teria de apontar a direção do movimento revolucionário, não o fazia porque não possuía “uma teoria consistente, nem um objetivo muito claro”. O propósito principal, segundo Caio, deveria ser a “organização no campo”, que ainda estava num estágio “primaríssimo”. Os trabalhadores rurais já se mobilizavam por seus direitos, mesmo que de forma imperfeita e confusa. A ordenação, contudo, precisava vir “de fora”, dos setores urbanos, operários e estudantis. Além disso, não seria necessária a criação de um organismo ilegal. A constituição de um sindicato rural (uma ferramenta reconhecida por lei) cumpriria o papel nas contendas no agro. Alguns anos antes, Caio Prado Júnior insistira que seria inimaginável o desaparecimento imediato da relação tradicional de emprego e a transformação súbita daquela massa de trabalhadores em “camponeses pequenos produtores e proprietários”, pela falta de condições no país para que isso ocorresse. Assim, considerando a conjuntura histórica concreta, a transformação socialista do regime naquele momento não estava no foco da questão, uma advertência que fazia inclusive ao “sectarismo da esquerda”: não se deveria visar situações “ideais” e esquemas “utópicos”, por mais atraentes que fossem; a perspectiva “realista”, portanto, era fundamental (ou seja, o triunfo do socialismo não só não seria imediato no Brasil como não poderia ser previsto). De qualquer forma, para CPJ, os termos “revolução” e “insurreição” não eram equivalentes. E, no caso brasileiro, especificamente, a estratégia mais adequada, portanto, não incluía a luta armada. Nesse sentido, não seria muito diferente de outros dirigentes e intelectuais pecebistas, como Luiz Carlos Prestes e Elias Chaves Neto, que criticavam a experiência guerrilheira durante a ditadura militar.
No esquema caiopradiano de revolução, os problemas brasileiros não poderiam ser resolvidos dentro do regime burguês vinculado aos interesses dos imperialistas e ao atraso dos grandes latifúndios no campo. Ainda que a revolução tenha de cumprir tarefas democráticas, incorporando grandes setores excluídos da população à vida nacional, ela possui um caráter de transição para o socialismo, e os trabalhadores são os líderes desse processo. A suposta “fase” democrática, portanto, não seria “burguesa” (afinal, o país já era, segundo ele, havia muito tempo, “arquiburguês” e capitalista), mas condicionada, em última instância, ao caráter global socialista. E a revolução brasileira não deveria ser vista como um sistema acabado, mas como um processo permanente, ininterrupto e dinâmico. Caio Prado Júnior, nesse sentido, propõe lineamentos, indicações gerais a partir de uma avaliação do contexto histórico, apontando os principais problemas e a necessidade de lidar com eles. Mas pode deixar questões em aberto. Afinal, ele não escreve manuais nem sugere respostas definitivas (ou diz como chegar a elas de maneira “exata” e “científica”), mas aponta quais nós górdios devem ser desatados. Por isso, as questões se apresentam constantemente durante o processo; à medida que são resolvidas, novos questionamentos e problemas surgem, com os quais as forças populares também deverão lidar. É ao longo desse continuum que a revolução se processa.
Para Heleno Cláudio Fragoso (1984, p. 100), o ponto de vista de CPJ era de que uma conquista do povo criaria condições para novas vitórias, o que resultaria na marcha para o socialismo (como sustentaria mais tarde Togliatti), a partir de um regime verdadeiramente democrático. Por isso, considerando que a massa popular seria o elemento revolucionário, ele era adversário, naquele momento, de uma política que defendia uma ideia de revolução baseada na ação de uns poucos homens, que supostamente poderiam deflagrá-la por um ato de vontade. Sendo assim, em relação especificamente à luta armada na década de 1960 (com uma visão distinta daquela que propugnara nos anos 1930), Caio Prado Júnior estava em consonância com a posição oficial soviética da época, apoiando, portanto, sua política de coexistência pacífica. Ou seja, como já dito anteriormente, em relação à URSS – assim como o PCB –, ele daria seu suporte tanto a Kruschev quanto a Brezhnev, quando estes se encontravam no poder (com a única exceção em relação à invasão da Tchecoslováquia em 1968).
A análise das fundações de nossa sociedade, portanto, era um eixo essencial na discussão caiopradiana. O autor de URSS, um novo mundo revelou as relações, os processos e as estruturas sociais, econômicas e políticas que operavam na composição e nas transformações de nossa sociedade, indicando o fator de instabilidade, de falta de continuidade no decurso histórico do país, ou seja, uma evolução por ciclos, com fases sucessivas de progresso, seguido de decadência, resultando num sistema e num processo econômico em que a produção e o crescimento se subordinavam a contingências extrínsecas. O desenvolvimento, portanto, significaria a superação do passado colonial e a eliminação do que ainda restava dele. Só assim, o Brasil poderia deixar sua posição periférica, complementar, subordinada e dependente. Para isso, ele mostrará a dinâmica das forças sociais internas e das pressões econômicas e políticas internacionais, a partir de temas como o sentido da colonização, o quadro geral do escravismo, a crise do sistema colonial e as forças que constituirão a República Velha, até os dias em que escrevia. Premente, nesse sentido, seria a consolidação de uma “estrutura política” democrática e popular, a modificação das relações trabalhistas (especialmente no campo) e o rompimento com o imperialismo, o qual, segundo ele, se integrara à economia do Brasil ao longo de vários lustros, a partir de mecanismos como financiamento de produção, comércio e exportação de produtos distintos (especialmente o café); fortalecimento de setores vinculados a bancos, agências creditícias ou elementos ligados à especulação financeira operando por aqui; e a atuação de interesses estrangeiros em áreas como indústrias, transportes, mineração e serviços públicos. A subordinação do país ao quadro maior das relações econômicas em nível internacional seria uma constante e um entrave para o pleno desenvolvimento brasileiro. Para ele, o imperialismo, em última instância, constituiria um fator que, ao mesmo tempo, integraria e completaria o sistema colonial, apresentando-se, além do mais, como uma “deformidade” ao longo do processo de modernização (Pericás, 2024). A luta contra o imperialismo, portanto, era fundamental e um dos elementos importantes de seu pensamento político.
Referências bibliográficas
Bartoletti, Sylvio Moraes, “Relatório do delegado-adjunto de Ordem Política Sylvio Moraes Bartoletti”, s. d. [c. abril de 1965], arquivo pessoal de Danda Prado.
Blaj, Ilana, “O marxismo na historiografia brasileira: um olhar inovador”. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Marx e Engels na história. São Paulo: Xamã, 1996.
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Castro, Fidel. A revolução e o Estado. São Paulo: Brasiliense, 1963a.
. Discurso de 2 de janeiro de 1963. São Paulo: Brasiliense, 1963b.
. Três declarações fazem história. São Paulo: Brasiliense, 1962.
Fragoso, Heleno Cláudio. Advocacia da liberdade: a defesa nos processos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
Gorender, Jacob. Combate nas trevas, a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.
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Prado Júnior, Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004.
. Dialética do conhecimento, tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1960.
. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1966.
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Silva, Maria Iracema, “Marxismo e historiografia brasileira: uma abordagem possível”. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Marx e Engels na história. São Paulo: Xamã, 1996.
Principais obras
A cidade de São Paulo: geografia e história. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
A questão agrária no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.
A revolução brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1966.
Dialética do conhecimento (dois volumes). São Paulo: Editora Brasiliense, 1952.
Diretrizes para uma política econômica brasileira. São Paulo: Gráfica Urupês, 1954.
Esboço dos fundamentos da teoria econômica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1957.
Evolução política do Brasil: ensaio de interpretação dialética da história brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1947.
Evolução política do Brasil: ensaio de interpretação materialista da história brasileira. São Paulo: Gráfica Revista dos Tribunais, 1933.
Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1953.
História econômica do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1945.
História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Gráfica Urupês, 1968.
História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1972.
Notas introdutórias à lógica dialética. São Paulo: Editora Brasiliense, 1959.
O estruturalismo de Lévi-Strauss/o marxismo de Louis Althusser. São Paulo: Editora Brasiliense, 1971.
O mundo do socialismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1962.
O que é filosofia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.
O que é liberdade: capitalismo x socialismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
URSS, um novo mundo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934.