Saffioti, Heleieth

Daniele Motta

Heleieth Iara Bongiovani Saffioti nasceu no ano de 1934 numa família humilde em Ibirá, no interior de São Paulo, no Brasil. Foi alfabetizada em casa pelas tias professoras antes de ingressar na escola e morou com diversos familiares até se casar. Quando já morava na cidade de São Paulo, concluiu seus estudos na tradicional Escola Caetano de Campos e ingressou no curso de Ciências Sociais no ano de 1956 na Universidade de São Paulo (USP). Ainda em 1956 casou com o químico Waldemar Saffioti (de quem herdou o sobrenome) e foi morar com ele nos Estados Unidos. Quando voltou ao Brasil, um ano depois, concluiu o curso e se formou no ano de 1960. Dois anos depois Heleieth muda para a cidade de Araraquara, no interior do Estado de São Paulo, onde começou a dar aulas na  Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, local de trabalho de Heleieth por anos

Sua primeira grande obra foi sua tese de livre docência, A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, defendida em 1967, orientada por Florestan Fernandes. Heleieth foi direto da graduação para a Livre Docência, pulando etapas, pois seu orientador receava que haveria um endurecimento político na ditadura militar que ocorria no Brasil que poderia impedi-la de concluir. Sua tese foi defendida em 1967 e publicada em livro em 1969, marcando o início de sua vida na pesquisa. Essa pesquisa é considerada um  marco nos estudos sobre mulheres no Brasil, e aliou o método de pesquisa marxista com as análises sobre a questão feminina.

Sua formação na USP fez com que tivesse contato com nomes bastante conhecidos do pensamento brasileiro: Antonio Candido, Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso,  Luiz Pereira, entre outros. Estava inserida numa escola sociológica que acumulou uma tradição de pensar o Brasil e isso se refletiu ao longo de toda a sua obra, com um forte olhar para a questão das mulheres no capitalismo brasileiro (Motta, 2020). 

Já em seu primeiro livro é possível perceber tanto a apreensão feminista das formulações marxistas –pois é partindo da análise do modo de produção que insere uma leitura sobre as desigualdade de gênero–, quanto uma abordagem marxista de problemáticas feministas – ela  enriquece o debate sobre as desigualdades de classes quando aponta que são atravessadas por estruturas de gênero (e raça) (Gonçaves, 2011). Ela faz esse duplo movimento sobretudo a partir da análise das mulheres no mercado de trabalho. Essa relação vai se desenvolvendo e se complexificando ao longo de toda a sua trajetória acadêmica. 

A autora buscou compreender a exploração capitalista na vida das mulheres, e especificamente na vida das mulheres na periferia do sistema capitalista mundial, apontando para a desvalorização e falta de reconhecimento do trabalho feminino, faz isso a partir de estudos empíricos e análise de dados. Por isso, ainda que tenha se debruçado sobre a realidade brasileira, suas obras podem servir de inspiração para a reflexão sobre a relação entre as desigualdades na américa latina, já que vincula sua análise partindo do modo de produção e sua vinculação periférica.  

Destacam-se os estudos sobre as trabalhadoras têxteis e as empregadas domésticas: Emprego doméstico e capitalismo, 1978; Do Artesanal ao Industrial: a exploração da mulher, 1981; Mulher Brasileira: opressão e exploração, 1986 (Motta e Bezerra, 2021). Essas obras dão suporte a tese defendida sobre o alijamento da mulher no mercado de trabalho da A mulher na sociedade de classes: mito e realidade (1969). Para tanto, Heleieth faz uma combinação entre marxismo e feminismo, pois para entender a desigualdade sofrida pelas mulheres era necessário olhar para o modo de produção, mas também para outros nexos, como os culturais e simbólicos. Dessa forma, a autora buscou dialogar com inúmeras correntes das Ciências Sociais, o que fez com que Heleieth estabelecesse alguns desafetos no campo do marxismo, uma vez que, ao defender a questão da mulher como um fator estruturante na sociedade, a colocou lado a lado da questão de classe nas suas explicações, articulando-as, sem defender a existência da primazia das classes sociasi.

A Heleieth Saffioti teve uma recepção morna no Brasil, sua tese de livre docência apesar de ser um marco nos estudos sobre a questão da mulher, foi publicada em 1969, teve uma 2a edição em 1976 e depois de quase quarente anos, foi reeditada em 2013 pela editora expressão popular, alcançado um diálogo com outras gerações de pesquisadoras.

Sorj e Araujo (2021) analisaram a recepção da tese de Heleieth Saffioti no Brasil e perceberam que há, nos últimos anos, uma recuperação de sua obra no país. Mas também perceberam que apesar disso “Saffioti permanece como uma autora marginal no mainstream das Ciências Sociais brasileiras, muito embora tenha um papel de destaque nos estudos de gênero”. 

No entanto, ela também resoou internacionalmente, tendo sua tese A mulher na sociedade de classes traduzida para o inglês em 1978 (Women in class society) pela Monthly Review Press, tendo uma apresentação do livro feita pela antropóloga marxista Eleanor Leacock. A autora também circulou nos diferentes países da américa latina, participando de congressos e mesas, tendo algumas publicações em periódicos na Argentina e na Colombia. No entanto, seus principais livros (incluindo sua pioineira tese) ainda hoje seguem sem tradução para o espanhol. 

É importante ressaltar que a contribuição de Heleeith Saffioti não se limita a uma única obra mas a toda uma vida dedicada ao campo de pesquisas sobre as mulheres. Segundo Gonçalves (2011), sua obra pode ser dividida em duas grandes fases, uma primeira em que analisa o trabalho dass mulheres na sociedade capitalista e um segundo momento que se dedica ao estudo da violência sofrida pelas mulheres, que situa a análise acerca  da  imbricação entre as determinações de classe, de gênero e de raça/etnia. A autora é ainda hoje uma referência da área de estudos de gênero no Brasil e foi responsável pela criação, no ano de 1989, na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), do Grupo de Trabalho "Mulheres e Trabalho", abrindo novas possibilidades de diálogo para as(os) pesquisadoras(es) com interesse na área. 

Desde seu estudo sobre a Mulher na sociedade de classes: mito e realidade a autora já parecia entender a necessidade da reflexão articulada das relações de raça, classe e gênero, pois ainda que o foco fosse o estudo sobre a mulher, faz isso sem separar dos problemas gerais da sociedade (seja ela escravocrata ou capitalista) e como estuda a sociedade brasileira, se preocupa em situar as questões das mulheres negras. Tal preocupação que ganhou força ao longo dos anos e a fez chegar na formulação do “nó frouxo”, ainda que seja uma perspectiva analítica pouco mencionada para o debate contemporâneo das intersecções (Motta e Bezerra, 2021). 

A ideia do nó –ainda que careça de maiores aprofundamentos, divulgação e circulação– é bastante fértil, pois a reflexão a partir dele foi um salto teórico-metodológico no pensamento da autora, que mostra a originalindade que fez da articulação entre marxismo e feminismo, buscada pela autora ao longo de toda sua trajetória. 

A reflexão sobre a articulação de categorias aparece no seu primeiro livro a partir da leitura da formação do modo de produção capitalista, mas é com o desenvolvimento de sua trajetória acadêmica e política que vai superar a ideia da supremacia da classe em relação às demais relações  e desenvolver a ideia do nó entre classe, raça/etnia, gênero; evitando hierarquizações entre elas. Foi através da observação dos processos sociais brasileiros que amadureceu a ideia do nó, com a perspectiva de não separação entre as noções de exploração/dominação. 

Quando escreveu o livro O Poder do Macho em 1987 a ideia da imbricação aparece explicitamente, como patriarcado-racismo-capitalismo: 

É impossível isolar a responsabilidade de cada um dos sistemas de dominação-exploração fundidos no patriarcado-racismo-capitalismo pelas discriminações diariamente praticadas contra as mulheres. De outra parte, convém notar que a referida simbiose não é harmônica, não é pacífica. Ao contrário, trata-se de uma unidade contraditória (Saffioti, 1987, P. 62). 

Dessa obra em diante os textos da autora explicitam e enfatizam a necessidade da reflexão articulada das categorias, até chegar na metáfora do nó. Segundo a autora há que se levar em consideração não apenas uma contradição fundante, nas suas palavras: 

A sociedade não comporta uma única contradição. Há três fundamentais, que devem ser consideradas: a de gênero, a de raça/etnia e a de classe. Com efeito, ao longo da história do patriarcado, este foi-se fundindo com o racismo e, posteriormente, com o capitalismo, regime no qual desabrocharam, na sua plenitude, as classes sociais (Saffioti, 2000, P. 73). 

Segundo  Saffioti (1992:206) "não deveríamos buscar a primazia do sexo, da classe ou da raça, nem as isolar como estruturas separadas, já que elas se fundiram historicamente". Essa ideia é profundamente explorada no seu livro Gênero, Patriarcado e Violência, onde a metáfora do nó está mais madura. O formado pelas três contradições não é uma somatória, mas uma imbricação dessas relações, que torna a análise complexa, segundo a autora: 

O nó formado por estas três contradições apresenta uma qualidade distinta das determinações que o integram. Não se trata de somar racismo + gênero + classe social, mas de perceber a realidade compósita e nova que resulta dessa fusão (…) Uma pessoa não é discriminada por ser mulher, trabalhadora e negra. Efetivamente, uma mulher não é duplamente discriminada, porque, além de mulher, é ainda uma trabalhadora assalariada. Ou, ainda, não é triplamente discriminada. Não se trata de variáveis, mas sim de determinações, de qualidades, que tornam a situação destas mulheres muito mais complexa (Saffioti, 2015: 122). 

A metáfora do nó é qualificada como frouxa pela autora, (Saffioti, 2015: 133) "Não se trata do nó górdio nem apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de suas componentes". Essa imagem do nó frouxo é bastante interessante, pois além de colocar as três relações como estruturantes ainda permite mobilidade entre essas, e mais do que isso, possibilita também que na análise das relações sociais, seja nítida a diferença na desigualdade. Isso porque ainda que a constituição das relações desiguais de raça, classe e gênero sejam estruturantes na sociedade brasileira atual, elas perpassam outras formas de diferenciação, que se entrecruzam com essas, como linhas que passam entre esse nó frouxo, como: a idade, sexualidade, religiosidade, nacionalidade. Entendendo  dessa maneira, Heleieth Saffioti pode ser considerada uma leitura marxista acerca das intersecções, demarcando as estuturas macrossociais (que estruturam as relações sociais) e as microssociais (que podem se modificar a depender do contexto). 

Heleieth Saffioti foi uma autora que deixou uma contribuição fundamental, articulou elementos da teoria marxista a partir de uma releitura que tratou da história das sociedades periféricas (latino americanas, em especial a realidade brassileira) com as diversas contribuições da teoria feminista. Sem se furtar de atualizar seu pensamento e sua contribuição enquanto pesquisadora tratou de temas que, mesmo quinze anos após seu falecimento, mostram a atualidade de suas obras, tratando de temas centrais ao entendimento da sociedade contemporânea. A reflexão sobre a democracia nas sociedades latino-americanas, se analisadas pelas questões estruturantes já apontadas pela autora a partir da metáfora do nó (classe, raça/etnia e gênero) abrem diversas questões sobre a temática: o direito à diferença, os limites à liberdade, o reconhecimento e as identidades, a questão da exclusão, a perpetuação das desigualdades sociais, a violência para citar alguns. O enfrentamento dessas temáticas via a herança do pensamento marxista na América Latina ganhará muito ao se debruçar sobre as obras de Heleieth Saffioti. 

Referências: 

Gonçalves, R. (2011). O feminismo marxista de Heleieth Saffioti. Lutas Sociais, (27), 119–131.

Motta, D. (2020). A CONTRIBUIÇÃO DE HELEIETH SAFFIOTI PARA A ANÁLISE DO BRASIL: gênero importa para a formação social? Caderno CRH, 33, e020027.

Motta, D. (2020). Revisitando Heleieth Saffioti: a importância de sua contribuição (p.10-27). In: Maciel, David; Costa Neto, Pedro Leão da; Gonçalves, Rodrigo Jurucê Mattos (Orgs.) Intelectuais, política e conflitos sociais. Goiânia: Edições Gárgula; Editora Kelps. 

Motta, D. , & Bezerra, E. M. (2021). A força de Heleieth Saffioti 50 anos depois. Revista Estudos Feministas, 29(1). 

Saffioti, H (1987). O poder do macho. São Paulo: Moderna

Saffioti, H. (2005). Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: fundação Perseu Abramo.

Saffioti, H. (2013). A mulher na sociedade de classes. São Paulo: Expressão Popular.

Saffioti, H. (1992). Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A. O. ; BRUSCHINNI, C. (Orgs), Uma questão de gênero. São Paulo: Rosa dos Tentos Editora e Fundação Carlos Chagas.

Saffioti, H. (2015). Gênero, patriarcado e violência. 2ª edição, são Paulo: Expressão popular: fundação Perseu abramo.

Saffioti, H. (2000). "Quem tem medo dos esquemas patriarcais de pensamento?". Crítica Marxista, São Paulo, Boitempo, v.1, n. 11, p. 71-75. 

Sorj, B., & Araujo, A. B. (2021). "A mulher na sociedade de classes: um clássico dos estudos de gênero". Estudos Feministas, 29(1), 1–16. 

Principais obras da autora: 

A mulher na sociedade de classes: mito e realidade (1969)

Women in class society (1978)

Emprego doméstico e capitalismo – tomo 1 (1978)

Emprego doméstico e capitalismo – tomo 2 (1979)

Do artesanal ao industrial: a exploração da mulher – um estudo de operárias têxteis e de confecções no Brasil e nos Estados Unidos (1981)

O poder do macho (1987)

Mulher brasileira é assim (co-organizadora Monica Muñoz-Vargas) (1994)

Violência de gênero: poder e impotência (1995)

Gênero, patriarcado, violência (2004)