Encontros com a Civilização Brasileira (Brasil, 1978-1982)

Cristiano Pinheiro de Paula Couto

Transcorridos treze anos do surgimento da Revista Civilização Brasileira, em março de 1965, foi lançado o primeiro número da revista Encontros com a Civilização Brasileira, em julho de 1978, seguido por mais 28 números, mensalmente publicados. Apesar da inescapável referência exitosa de sua antecessora, a coleção estreada em 1978 e terminada em 1982, não teve o mesmo êxito: “Embora a nova revista divulgasse artigos de vários dos antigos colaboradores da Editora, tinha orientação ideológica menos definida e não teve repercussão, no meio cultural, comparável àquela que a precedeu” (Vieira, 1998, pp. 183-184). Essa putativa orientação ideológica mais definida – um eufemismo, talvez, para ortodoxia – jamais foi uma virtude das mais aliciantes para Ênio Silveira, figura tutelar da Editora Civilização Brasileira e timoneiro dessas duas revistas. 

Com um conselho consultivo integrado por quase cinco dezenas de colaboradores, entre os quais figuraram Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Ferreira Gullar, Antônio Cândido, Alfredo Bosi, Maria da Conceição Tavares e Arthur Giannotti, Encontros foi editada pelo poeta Moacyr Félix e dirigida por Ênio Silveira e teve um brioso tratamento gráfico. Publicada em formato de livro em brochura, medindo 14x21 cm, diagramação de Léa Caulliraux (até ao número 22) e, posteriormente, de Ana Maria Araújo e C. A. T. Torres, a revista estampou, em suas capas, além das ousadas produções gráficas de Eugênio Hirsch, o símbolo da Editora Civilização Brasileira, em alto contraste, desenhado por Marius Lauritzen Bern, concebido pela conjugação da “forma das letras C e B com a idéia [sic] de um livro com as páginas abertas […]” (Mariz, 2005, p. 101). Todos os números da revista foram compostos e impressos por uma gráfica carioca, a Portinho Cavalcanti LTDA. A distribuição ficou sob a responsabilidade exclusiva da livraria da Editora Civilização Brasileira, sendo feita, também, pelas bancas e agências de jornais e revistas e pela Fernando Chinaglia Distribuidora S. A., do Rio de Janeiro.

Encontros manteve a linha de conduta intelectual da sua bem-sucedida predecessora. O projeto político-cultural da coleção dos anos 1970 perpetuava uma identidade fortemente definida pelo nacionalismo e pelo humanismo igualitarista, embora a conceção de cultura de Ênio Silveira tenha sido sempre universalista e avessa à visão instrumental maioritária na esquerda brasileira nos anos 1960 e ainda vigente na década seguinte. De qualquer forma, independentemente de continuidades ou ruturas ideológicas consideráveis entre as duas coleções, os tempos eram outros, pois “vivia-se a desmobilização decorrente de quase quinze anos de censura e de violência por parte do Estado” (Vieira, 1998, p. 184). Em 1982, abalado por anos de perseguição política e por todos os constrangimentos daí resultantes, Ênio Silveira viu-se em situação de enorme dificuldade financeira, procurando mitigá-la, primeiro, mediante uma colaboração operacional com a Difusão Europeia do Livro e, depois, com uma capitalização, pela oferta de ações, quando o Banco Pinto Magalhães (cujo principal acionista, Manuel Cordo Boullosa, era cidadão português) e o major Fernando da Silva, também luso, tornaram-se acionistas dominantes da Editora Civilização Brasileira, com 90% de participação acionária (Hallewell, 2005, p. 599). No vórtice dos acontecimentos, Encontros não resistiu à mudança do controle acionário da Editora Civilização Brasileira e, qual albatroz na tempestade, como o próprio Ênio Silveira (Ferreira, 1992, p. 89) fez saber sobre a tíbia recepção de Encontros, deixou de ser veiculada.

Outra reviravolta, mas na arena das ideias políticas, marcou a história da revista Encontros. O fracasso da experiência armada, esmagada pelo terrorismo de Estado, implicou metamorfoses, designadamente na visão da esquerda sobre a democracia. Foi o projeto democrático o estuário para o qual convergiram muitos intelectuais que se confrontaram com o abrandamento do elã revolucionário e com o desengano provocado pelo socialismo real. O periodismo político-cultural não ficou alheio aos desdobramentos desse momento de inflexão. Como sugeriu D. Rollemberg (1999, p. 200): “O tema da revolução, que povoara a imaginação da esquerda e sobressaía nas páginas da imprensa, vai pouco a pouco cedendo lugar ao grande tema do fim dos anos 1970: a democracia”. Eis aí a grande virada no pensamento crítico latino-americano – em que se inscreve o brasileiro – formado na tradição do marxismo, uma virada que foi do “louvor da revolução”, nos anos 1960, ao “louvor da democracia”, nos anos 1980 (Burgos, 1999). Como quer que seja, a Editora Civilização Brasileira, apesar da multiplicidade de posições acolhidas e postas em debate nos projetos editoriais que dinamizava, como a revista Encontros, sempre perfilou os valores da esquerda liberal, por conseguinte democrática, nas antípodas, contudo, das posições da esquerda libertária, irracionalista, individualista e anticomunista, tributária de Nietzsche, surgida depois de 1945, no pós-guerra, na França, e robustecida no rescaldo do Maio de 1968, encarnada no pensamento da chamada Nova Esquerda, definida por Monville como “esquerda moral” (2007, p. 9), esquerda essa, a propósito, muito instrumentalizada pela CIA por meio do Congresso pela Liberdade da Cultura, como bem atestam as histórias de diversas revistas culturais, como Encounter (Saunders, 2008), Mundo Nuevo (Mudrovcic, 1997), Cadernos Brasileiros (Ridenti, 2018) e muitas outras.

Não é possível deixar de considerar, entretanto, que a esquerda latino-americana sofreu, nos anos 1960 e na década subsequente, derrotas históricas em mais de uma frente. Para além dos insucessos da revolução armada, a via democrática, consubstanciada na experiência chilena liderada por Allende, também foi brutalmente suprimida. Apesar das desventuras da luta armada, o apelo revolucionário não esmorecia em todos os meridianos da América Latina daquelas décadas, tendo irrompido novamente, triunfante, na Nicarágua, em 1979. Por isso, a despeito de tantas derivas, a orientação maioritariamente humanista e democrática da Editora Civilização Brasileira, também legatária da tradição marxista, manteve-se constante, pois era um atributo inerente do posicionamento que consistentemente defendeu, mantendo-se sempre em debate, no entanto, com outras correntes, algo que se manifestou na revista Encontros.

No Brasil, para alguns segmentos da esquerda, historicamente ligados à ideia de “revolução total” (Boltansky, 2002, p.3), a aceitação da democracia não era provável no fim da década de 1970. A lógica binária da Guerra Fria produzira uma dissociação entre democracia e revolução. Estava em curso, no entanto, uma mudança histórica em alguns espaços da cultura da esquerda brasileira. Quando Enrico Berlinguer, então secretário-geral do Partido Comunista Italiano, enfatizou o “valor historicamente universal” da democracia, durante as celebrações, em Moscou, do 60º aniversário da Revolução de Outubro, essa dicotomia começou a ser subvertida. O desmantelamento da tensa relação entre a especificidade histórica da esquerda, a revolução, e o regime dominante na política ocidental, a democracia, tornar-se-ia, doravante, a tônica dos discursos de alguns segmentos da esquerda brasileira. Enquanto a ideia schilleriana de “revolução total”, concebida no fim do século XVIII como resultado do ímpeto romântico, era substituída pela “revolução molecular”, teorizada por caudatários da Nova Esquerda e formulada apenas alguns anos depois de Octavio Paz ter escrito para a revista Dissent sobre “o crepúsculo da revolução”, ecoando Ortega y Gasset, a revista Encontros fazia repercutir, no Brasil, a noção de democracia como “valor historicamente universal”, o que não implicou um ataque à ideia de revolução, perfilada pela revista, no entanto, como revolução processual de longa duração.

A perspetiva “instrumental” e “taticista” sobre a democracia dominou por muito tempo a orientação de significativos setores da esquerda brasileira, como o Partido Comunista Brasileiro, mas, nos anos 1970, começou a perder primazia. O editor Ênio Silveira e um de seus fiés escudeiros, o crítico baiano Carlos Nelson Coutinho, estavam atentos às tendências que surgiam na Europa, sobretudo o eurocomunismo, e a ideia audaciosamente defendida por Berlinguer em Moscou, diante de toda a nomenklatura soviética, ideia de acordo com a qual a democracia deveria passar a ser entendida como um “valor historicamente universal”, repercutiu no Brasil nas páginas de Encontros, ganhando, depois, vida própria. Como ideia-força, irradiou-se para fora da órbita da revista e “dividiu as águas no campo marxista” (Del Roio, 2002, p. 132).

Grupos de intelectuais brasileiros afeitos ao marxismo “descobriam” a “democracia política” (Pécaut, 1990, pp. 281-282). A despeito da reação crítica1 que o artigo de Carlos Nelson Coutinho despoletou, como as objeções de José Paulo Netto manifestas no texto “Notas sobre a democracia e a transição socialista”, publicado no 7º número da revista Temas de Ciências Humanas, houve, naquele contexto de ruturas, no pensamento político de grupos influentes da esquerda intelectual brasileira, uma importante inflexão: “Para significativos setores da esquerda, a defesa da democracia não deve ter mais um valor tático, mas adquirir um valor estratégico, um valor em si mesmo” (Toledo, 1994, p. 28).

Nos anos de erosão do regime militar, a revista Encontros, embora sofresse os efeitos de deslocamentos ideológicos de frações do pensamento crítico envolvidas com a resistência contra a ditadura, foi corresponsável pela difusão, no Brasil, de uma nova conceção de democracia, de um paradigma que se tornaria preponderante na orientação política de grupos influentes da esquerda brasileira2. Em um contexto social turbulento, parte do pensamento de esquerda brasileiro, influenciado pelas formulações que vinham ganhando destaque na Europa, iniciou uma nova fase de revisões críticas: “Em oposição à ditadura, a esquerda teve que incorporar, como nunca o fizera, o tema da democracia [...]” (Del Roio, 2002, p. 130).

O artigo de Carlos Nelson Coutinho, importante difusor das ideias de Gramsci no Brasil, foi dividido em duas secções: “Algumas questões de princípio sobre o vínculo entre socialismo e democracia política” e “O caso brasileiro: a renovação democrática como alternativa à via prussiana”. Transcorridas duas décadas, Coutinho observou que a intenção que o animara fora empregar a ideia de Berlinguer “— naquele momento de simultâneo combate contra a ditadura e contra o dogmatismo ‘marxista-leninista’ — como bandeira de luta”3. Herege do pensamento marxista brasileiro, responsável pela primeira4 publicação, no Brasil, de um texto, em português, de Walter Benjamin, Coutinho, em retrospetiva, definiu o controverso escrito desta maneira: “Tratava-se de um ensaio contra a corrente, tanto que gerou intensas polêmicas, provocando dissensos e consensos” (2000, p. 9).

Sob a influência do eurocomunismo, designadamente do comunismo democrático italiano (Mondaini, 2022), Encontros abraçou uma noção de democracia avessa à formulação pela qual haveria uma identificação irredutível entre a democracia política e seus institutos com os valores burgueses, a mesma associação, vale notar, que já na virada do século XIX para o XX suscitara acirradas polêmicas, como a que dividiu “ortodoxos” e “revisionistas” na Segunda Internacional. Rejeitava-se a identificação estrita da democracia com sua forma estatal (burguesa ou proletária) e contestava-se a conceção instrumentalista do Estado, seja como mecanismo neutro (acima das classes), seja como sustentação de um aparato coercitivo desprovido totalmente de autonomia. Encontros instaurava, assim, no debate intelectual da esquerda brasileira, uma visão de democracia estratégica, esteio de um reformismo revolucionário inovador.

Notas

1. Além das objeções de José Paulo Netto, o texto publicado em Encontros com a Civilização Brasileira, “A democracia como valor universal”, valeu ao autor, conforme o próprio Carlos Nelson Coutinho lembra depois de 20 anos, no prefácio que escreveu em livro que reúne seus ensaios sobre a conturbada relação entre democracia e socialismo, duras críticas, tanto das correntes marxistas-leninistas como de celebrados liberais. Na segunda nota desse prefácio, são referidos os seguintes textos: do lado marxista-leninista, o panfleto de Octávio Rodrigues, Contra o revisionismo, [s.l.], [s.n.], 1979, 55 p., e o ensaio de Adelmo Genro Filho, irmão de Tarso Genro, intitulado “A democracia como valor operário e popular”, publicado também na revista Encontros com a Civilização Brasileira, no 17º número, de novembro de 1979, pp. 195-202; do lado liberal, dois ensaios do diplomata e crítico literário José Guilherme Merquior: “Cultura e democracia” e “Marxismo e democracia”, publicados no Jornal do Brasil (27/12/1980, 03/01/1981 e 10/01/1981) e republicados em Merquior, J. G. (1981). As idéias e as formas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

2. Não se pode deixar de mencionar, também, como núcleo ideológico de renovação da cultura marxista brasileira nos anos 1970, a revista Temas de Ciências Humanas (1977–1979), cujo editor foi Raul Mateos Castell (Del Roio, 2002, p. 131).

3. Carlos Nelson Coutinho, Democracia: um conceito em disputa. Disponível em: <http://www.socialismo.org.br/portal/filosofia/155-artigo/699-democracia-um-conceito-em-disputa->. Acesso em: 21 de novembro de 2012. Conforme Marco Aurélio Nogueira (apud Caio Navarro de Toledo, “A modernidade democrática da esquerda: adeus à revolução?”, Crítica Marxista, n. 1, São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 29, nota # 5), o texto de Coutinho “impulsionou realinhamentos teóricos fundamentais e, sobretudo, ajudou a consolidar, entre muitos revolucionários, uma cultura política democrática e uma visão moderna de socialismo”.

4. Trata-se do famigerado ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, traduzido por Coutinho e publicado no nº 19-20 (maio-agosto) da Revista Civilização Brasileira.

Referências 

Boltanski, L. (2002), “The left after May 1968 and the longing for total revolution”, Thesis Eleven, v. 69, n. 1, pp. 1-20.

Burgos, R. Os gramscianos argentinos. Cultura e política na experiência de Pasado y Presente. Campinas, 1999, 337p. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Departamento de Ciência Política, Universidade Estadual de Campinas.

Coutinho, C. N. (2000). Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez.

Del Roio, M. “Leandro Konder e um capítulo da história dos intelectuais” In: Pinassi, M. O. (2002). Leandro Konder: a revanche da dialética. São Paulo: Boitempo.

Ferreira, J. C. P. (1992). Editando o editor 3. Ênio Silveira. São Paulo: Edusp.

Hallewell, L. (2005). O livro no Brasil: sua história. 2ª ed. rev. e ampl., São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

Mariz, A. S. (2005). Editora Civilização Brasileira: o design gráfico de um projeto editorial (1959-1970). Rio de Janeiro, 2005, Dissertação (Mestrado em Design) – Programa de Pós-Graduação em Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Mondaini, M. (2022). A invenção da democracia como valor universal. Enrico Berlinguer e o comunismo democrático italiano (1972-1984). São Paulo: Alameda.

Monville, A. (2007). Misère du nietzschéisme de gauche. De Georges Bataille à Michel Onfray, Paris: Aden.

Mudrovcic, M. E. (1997). Mundo Nuevo. Cultura y Guerra Fría en la década del 60. Rosario: Beatriz Viterbo.

Pécaut, D. (1990). Os intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática S. A.

Ridenti, M. “The Journal Cadernos Brasileiros and the Congress for Cultural Freedom, 1959-1970”, Sociologia & Antropologia, v. 8, nº 2.

Rollemberg, D. (1999). Exílios: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record.

Saunders, F. S. (2008). Quem pagou a conta? Rio de Janeiro: Record.

Toledo, C. N. (1994), “A modernidade democrática da esquerda: adeus à revolução?”, Crítica Marxista, nº 1, São Paulo: Brasiliense.

Vieira, L. R. (1998). Consagrados e malditos: os intelectuais e a Editora Civilização Brasileira. Brasília: Thesaurus.