Estudos Sociais (Brasil, 1968-1964)

Santiane Arias

A Estudos Sociais foi uma revista do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Publicada no Rio de Janeiro entre 1958 e 1964, teve ao todo dezoneve números, distribuídos nacionalmente a cada dois ou três meses. Integraram seu corpo editorial intelectuais importantes do pensamento marxista nacional, como Astrojildo Pereira, Armênio Guedes, Fausto Cupertino, Jacob Gorender, Jorge Miglioli, Leandro Konder, Mário Alves, Nelson Werneck Sodré e Rui Facó. 

Entre as inúmeras publicações do PCB, a Estudos Sociais possui particular importância e singularidade em grande medida pelo contexto da sua concepção. Entre a segunda metade dos anos 1940 e a primeira da década de 1960, o país experienciou grande mudança na sua paisagem socioeconômica e demográfica, com a rápida escalada da industrialização e urbanização. Simultaneamente, o campo progressista avançava com sua pauta e influencia na cena política e cultural, com a expansão dos sindicatos, partidos e associações das camadas médias urbanas, como jornalistas, advogados e escritores. É um momento importante também para o movimento estudantil. Em 1962, a União Nacional dos Estudantes desenvolveu, com artistas e intelectuais mais engajados, o Centro Popular de Cultura, formando grupos que “encenavam peças em portas de fábricas, favelas e sindicatos, publicavam cadernos de poesia vendidos a preços populares e iniciavam a realização pioneira de filmes autofinaciados” (Hollanda & Gonçalves, 1994, p.10). 

No mesmo período o movimento comunista passava por uma inflexão. O XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, e a Revolução Cubana, colocaram em evidência uma literatura pouco conhecida, ou até então desautorizada, alimentando a ambição de marxismos autóctones. As mudanças no movimento comunista internacional somadas àquelas ocorridas no cenário brasileiro impactaram o PCB, resultando na Declaração de Março de 1958, documento que marcou a primeira renovação pecebista (Santos, 1988).

A Estudos Sociais expressou a nova linha editorial do partido. Diferente das outras publicações oficiais, a revista costurou uma frente intelectual mais ampla atenta ao caráter nacional da formação e revolução no país1. Nas palavras de Leandro Konder: “A Estudos Sociais vinha de um certo esforço de um tratamento marxista mais ambicioso, mais rigoroso (...). Havia uma certa expectativa que nós desenvolvêssemos uma reflexão nossa sobre os problemas econômicos sociais. A Estudos Sociais é uma reação contra publicações do partido onde predominava a literatura traduzida, predominavam artigos soviéticos” (Arias, 2003). 

De fato, a nova publicação abrigou estudos e debates teóricos consistentes. Os longos artigos apresentam um sólido levantamento documental, estatístico e bibliográfico, especialmente sobre o Brasil, como no caso dos textos de  Miguel Costa Filho ("Quilombos", E.S. n. 9, 1960; "O trabalho nas Minas Gerais", E.S. n. 3/4, 1958), Alberto Passos Guimarães ("A questão agrária brasileira", E.S. n. 14, 1962), Jorge Miglioli ("Um debate sobre o capitalismo atual", E.S. n.7, 1960) e Mário Alves ("Dois caminhos da reforma agrária", E.S. n.13, 1962; "A burguesia nacional e a crise brasileira", E.S. n.15, 1962).

Havia na revista um compromisso com o conhecimento da realidade nacional, no qual ocupava um papel importante o caráter da formação do país, uma pista valiosa para a revolução socialista. Esse compromisso estava também associado à defesa do debate de ideias e ao combate do sectarismo. O  intuito de conciliar a perspectiva marxista revolucionária à colaboração ampla levou-a seguinte apresentação: “A Estudos Sociais é uma revista de tendência marxista, e como tal pretende intervir, democraticamente, ao lado de outras correntes do pensamento, no debate das questões relacionadas com a nossa realidade econômica, social e política. É seu propósito dar contribuição sincera, pelos meios que lhe são próprios e possíveis, ao esforço que entre nós se vem desenvolvendo no sentido de esclarecer os problemas da emancipação nacional e democrática. [...] Desejamos afirmar claramente que é nosso propósito estimular a polêmica: polêmica entre marxistas, polêmica entre marxistas e representantes de outras correntes do pensamento. É nossa convicção que a luta de opiniões, o confronto de idéias, a crítica, a discussão são indispensáveis ao desenvolvimento do pensamento e da cultura” (Estudos Sociais, 1958, p. 1).

Nesse sentido, temos na Estudos Sociais a primeira referencia a Antonio Gramsci no Brasil e a primeira publicação em língua portuguesa de Georg Lukács (Coutinho, 1990; Frederico, 1995). As traduções, todavia, são reduzidas quando comparadas aos periódicos anteriores. A maioria dos artigos são estudos de autores do país, com exíguo espaço para textos de teor programático. As áreas de economia, sociologia e política predominam, mas o espaço para a filosofia, literatura e estética foi garantido em todos os números. Aliás, segundo Armênio Guedes e Leandro Konder, foi nesse domíniou que houve maior liberdade para crítica e experimentação.  No final de toda edição havia uma seção de Crítica de livros e revistas, com resenhas, e na contracapa o anúncio de algum livro do Editorial Vitória (editora do PCB), da Livraria José Olympio, ou ainda da Livraria São José – reconhecidos canais de divulgação de obras de esquerda (Arias, 2005).

A preocupação em se diferenciar do stalinismo e posições mais sectárias aparece em mais de uma oportunidade. Em síntese, teria havido um erro, uma distorção, reconhecida e em vias de ser superada, inaugurando um novo momento. De acordo com essa narrativa, “os marxistas brasileiros, dogmaticamente, limitavam-se a aplicar à nossa realidade fórmulas gerais, rígidas, tiradas da prática de países de formação histórica diferente da brasileira” (Paiva, 1958, p. 291). A ausência de espírito crítico produziu deformações  “de natureza dogmática e até mística, relacionadas, como se sabe, ao culto da personalidade de Stálin. O fênomeno, está claro, se manifestou de modo variado em cada país. Entre nós, chegou a atingir proporções inflacionadas” (Gorender, E.S., n.3-4, 1958, p.350).

A despeito de possíveis discordâncias, existe certo consenso em torno da relevância do movimento comunista brasileiro nesse contexto. Para José Antonio Segatto (1995, p. 17), “(...) sobretudo depois de 1958, o PCB viveria o momento áureo de sua história (...) [onde] Sua influência extrapola em muito sua força orgânica e seu tamanho numérico”. Da mesma opinião compartilha Jacob Gorender (1987, p. 46): “[naquela fase] o PCB teve o momento de maior poderio em sua história. O período de vida legal de 1945-1947 foi luminescente, assinalado pelos êxitos eleitorais. Mas se tratava de um brilho enganoso, que disfarçava a sustentação fracamente estruturada nas massas operárias e a penetração insignificante no meio camponês. Do ponto de vista da influência política efetiva, o PCB era, então residual. Já no período de 1958-1964, converteu-se numa organização com capacidade decisória, apesar da quase ausência de expressão eleitoral, uma vez que não conseguiu recuperar o registro de partido legal”.

Por outro lado, o marxismo cruzava as fronteiras do Partido, adentrava o teatro, o cinema, o mercado editorial, outros movimentos sociais e a universidade – ficou bastante conhecido, por exemplo, o Seminário Marx, conduzido na Universidade de São Paulo (Frederico, 1998).

Assim, um dos períodos de maior efervescência política do Partido Comunista Brasileiro não coincidiu, necessariamente, com o intervalo de melhor desempenho eleitoral e maior número de filiados, decorreu, antes, da sua ampla influência cultural e ideológica, que o tornava uma referência incontornável no debate sobre a realidade nacional. Neste ponto, em particular, a contribuição da Estudos Sociais foi inestimável. Em abril de 1964, entretanto, veio o golpe militar e todo esse sopro de ânimo e vitalidade, ao qual a revista pertencia, foi abruptamente interrompido.

Notas

1. Essa é uma orientação explícita na declaração de 1958. Vejamos: “Nossas concepções dogmáticas também determinaram a maneira falsa como compreendíamos a questão do caminho da revolução brasileira. Não fomos capazes de distinguir na experiência histórica-universal da Grande Revolução de Outubro os traços essenciais, válidos para todos os países, e os aspectos particulares e singulares, cuja a repetição não pode ser obrigatória fora da Rússia”. (Documentos, 1980, p. 33)

Referências

Alves, Mário. A burguesia nacional e a crise brasileira. Estudos Sociais, n.15, 1962. 

Alves, Mário. Dois caminhos da reforma agrária. Estudos Sociais, n.13, 1962; 

Arias, Santiane. A revista Estudos Sociais e a experiência de um “marxismo criador”. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, p. 187, 2003. 

Arias, Santiane. Astrojildo Pereira e a revista Estudos Sociais. Novos Rumos, n. 44, p. 51-59, 2005.

Costa Filho, Miguel. O trabalho nas Minas Gerais. Estudos Sociais. n. 3/4, 1958

Costa Fillho, Miguel. Quilombos. Estudos Sociais, n. 9, 1960.

Coutinho, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.

Documentos. PCB: Vinte anos de política, 1958-1979. São Paulo: Ciências Humanas, 1980.

Estudos Sociais. Texto de Apresentação, n.1, Rio de Janeiro,1958.

Frederico, Celso. "A política cultural dos comunistas". In: Moraes, J. Q. (org.). História do marxismo no Brasil: teorias. interpretações. vol. 3. Campinas: UNICAMP, 1998.

Gorender, Jaco. Correntes Sociológicas no Brasil. Estudos Sociais, n.3-4, 1958. 

Guimarães, Alberto Passos. A questão agrária brasileira. Estudos Sociais, n. 14, 1962.

Hollanda, Heloísa B., Gonçalves, M. A. Cultura e participação política nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Miglioli, Jorge. Um debate sobre o capitalismo atual. Estudos Sociais, n.7, 1960.  

Moraes, Dênis. Imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio: JOE, 1994.

Moraes, João Quartim. A presença de Lukács na política cultural do PCB e na universidade. In: MORAES, J. Q.(org.). História do Marxismo no Brasil: Os fluxos teóricos. vol. 2. Campinas: UNICAMP,1995.

Paiva, Manuel. Os fundos de colonização sua importância para a questão agrária brasileira. Estudos Sociais, n.3-4, 1958. 

Segatto, J. A. Reforma e revolução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.